- O Estado de S. Paulo
O momento mais perigoso para um mau governo é, normalmente, aquele em que começa a remodelar-se.” A observação é de Alexis de Tocqueville sobre a França de seu tempo. Há sempre a possibilidade de exceções que confirmem a regra. Quem sabe veremos uma. Afinal, o Brasil já enfrentou - e superou - momentos de grande incerteza: ou econômica, ou política, ou ambas ao mesmo tempo e se reforçando mutuamente.
Mas a situação atual é inédita, porque as simultâneas incertezas, econômica e política, que já existiriam naturalmente - por força de ações e omissões muito nossas -, estão ambas sendo reforçadas por um processo de investigação de abrangência sem paralelo na História “deste país”, afetando pessoas físicas, privadas e públicas, e pessoas jurídicas, estatais e privadas. Processo penoso e longe de terminar.
Como foi longo e tortuoso o processo de chegar à situação de descalabro alcançada em 2014. Como está sendo longa e custosa para Dilma a tentativa de recuperar a credibilidade perdida, paradoxalmente com particular intensidade logo após sua vitória nas urnas. As causas foram muitas e, segundo o ilustre ex-ministro Delfim Netto (Folha, 6/10), “talvez o mais importante” tenha sido “não ter explicado clara e diretamente a seus eleitores (...) por que era impossível continuar com o sonho político, social e econômico construído pelo marketing eleitoral que a elegeu”.
Dado que isso foi feito com seu conhecimento e aprovação, creio que para Dilma teria sido impensável, à época, dar tal explicação a seu eleitorado. Tanto é assim que, passado quase um ano, o discurso oficial continua sendo constituído por variantes de um mesmo argumento básico, reiteradamente repetido - inclusive na sexta-feira pelo novo ministro-chefe da Casa Civil. Em resumo que talvez não faça justiça ao argumento: durante seis anos (desde 2008 até fins de 2014) os governos Lula e Dilma expandiram e preservaram o que realmente importava: o emprego e a renda do trabalhador brasileiro - apesar da crise internacional.
Mas, não mais que de repente, no final de 2014 o governo se deu conta de que “o mundo havia mudado” (para pior) e talvez o governo tivesse esticado muito além da conta a política “anticíclica” que vinha seguindo desde 2008 (na verdade, desde o início de 2007). E que essa política lhe havia fugido do controle, o que exigiria ajustes e um ministro da Fazenda não petista. Mas tão logo concluídos certos ajustes fiscais, recalibragens de “erros de dosagem”, e feitas algumas correções de rumo, o País retomaria logo, logo o crescimento do investimento, da renda e do emprego. Ainda antes do final de 2015.
Pois bem, sabe-se, há vários meses que isso não vai acontecer rapidamente e que 2016 e muito provavelmente também 2017 serão anos de um processo de mudança muito mais complexo que um rápido e transitório “ajuste” nas contas públicas, que traria, naturalmente, o crescimento de volta. O ministro Levy vem chamando a atenção, corretamente, para o fato de que sem a equação fiscal encaminhada de maneira crível não haverá recuperação, dada a incerteza vigente; e mesmo com o reequilíbrio fiscal permitindo redução das taxas de juros logo adiante não há garantia de sustentação do crescimento se não houver o terceiro elemento, reformas de médio e longo prazos que reduzam o custo de investir e criar empregos.
Isso é uma agenda para vários anos de um governo que tenha lideranças políticas convictas do caminho a seguir - e que se coordena para tal tanto no âmbito interno do próprio governo quanto nas relações do Executivo com o Congresso. Não é o que vimos ao longo do último ano. As falhas de coordenação internas, o intenso “fogo amigo” e a falta de convicção são patentes e ficaram evidentes como fratura exposta por ocasião de trapalhada do envio ao Legislativo de um orçamento deficitário para 2016, com a afirmação de que o orçamento estaria já “no osso” com respeito ao nível de gastos.
As falhas de coordenação dentro do Executivo e nas relações deste com o Congresso chegaram a alto ponto de combustão nestes últimos dias, exatamente quando o governo achava que havia, com sua minirreforma ministerial, recomposto e ampliado sua base de apoio - tiro que parece ter saído pela culatra. Esses eventos não contribuem em nada para reduzir as incertezas na economia - e o crescente “fogo amigo” a que estará sendo submetido o ministro Levy.
A observação do ilustre ex-ministro Delfim Netto talvez tenha, estou seguro que involuntariamente, contribuído para isso ao dar explicação adicional à extraordinária perda da popularidade da Dilma:
“Quando, sem anestesia, não comunicou, apenas fez saber aos que a apoiaram que se apropriaria da política econômica de seu adversário, perdeu, automaticamente, mais de 2/3 (de seus eleitores) e ficou reduzida à aprovação de hoje”. Nesse mesmo dia, a Folha abriu seu influente Painel (pág. 4) com a frase: “Ministros e petistas preveem a saída de Levy na virada do ano”. Mas, diz a nota, “apesar das pressões, Dilma resiste a tirá-lo. E mesmo o ex-presidente Lula, que criticou publicamente o ajuste fiscal, vê o desembarque, neste momento, como inoportuno”.
A expressão “neste momento” é intrigante (para não falar em “desembarque”). A impressão que dá a um observador distante é que há no ar um “movimento” em gestação, por ora em fogo brando, mas consistente, para, eventualmente, atribuir à política econômica “do ministro Levy” - não do governo do PT, de Dilma e de Lula - a responsabilidade pelo desolador quadro atual: desemprego em forte alta, na direção de ultrapassar os 10% em 2016, e inflação beirando os 10% em 2015, comendo a renda real do trabalhador. Os dois objetivos que realmente importavam (emprego e renda) e justificariam tudo o que foi feito a partir de 2007. Incluído o descalabro nas finanças públicas, que se tornou evidente no ano passado, quando a conta finalmente estourou.
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Pedro S. Malan é economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
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