O Globo
O novo argumento do governo para se defender pela prática de irregularidades na execução do orçamento de 2014 é ainda menos apropriado. Agora a tese é de que os programas sociais precisavam ser cumpridos. É o mesmo que dizer que desrespeitou a lei por uma boa causa. Existem caminhos dentro da legalidade fiscal para manter a política social mesmo em situação de crise.
Não houve em 2014 qualquer calamidade que secasse de repente os cofres públicos e obrigasse o governo a rasgar a lei para manter os benefícios dos mais pobres. Houve sinais prévios de que a crise fiscal estava ficando mais séria, mas o governo os ignorou e continuou ampliando despesas porque era ano eleitoral. Para esconder o malfeito, maquiou a contabilidade. Ao lado disso, usou programas financiados com dinheiro público como arma eleitoral, ameaçando os beneficiários com a hipótese do fim do programa em caso de derrota da presidente na campanha.
Tudo isso distorce a democracia. Ninguém defendeu o fim do Bolsa Família, até porque programas de transferência de renda para os pobres e muito pobres são resultado de um consenso do país. Foram desenhados por governos e instâncias administrativas diferentes e chegaram ao seu formato e amplitude atuais nos governos do PT. O dinheiro que os financiou saiu do bolso do contribuinte. Todos sabem que os programas sociais precisam de aperfeiçoamentos, até quem trabalha na execução deles. É da natureza das políticas públicas bem sucedidas, como o Bolsa Família, ter mecanismos de controle e aferição de qualidade que levam a mudanças. E foi esse princípio do aperfeiçoamento que alguns adversários da presidente defenderam.
Houve um momento no meio dos debates da campanha em que a presidente Dilma disse “a minha Bolsa Família”. Foi um ato falho. Era como se sentia, mas a política é pública e não de um presidente. Na democracia, os benefícios concedidos com dinheiro público não pertencem a um partido ou chefe político. Era assim no tempo dos currais eleitorais. A campanha oficial tratou os programas como se fossem propriedade particular da então candidata e ameaçou o eleitor sugerindo que os benefícios deixariam de existir caso votassem contra o governo.
Enquanto fazia isso, o governo estava aumentando as dotações para outros programas para exibi-los na vitrine da campanha. O caso mais chocante foi com o Fies, que saiu de menos de R$ 2 bilhões em 2011 para R$ 7,5 bilhões em 2013 e deu um pulo para R$ 13,75 bi em 2014. Passada a eleição, o governo congelou o programa e depois anunciou cortes nos subsídios. Isso é manipulação eleitoreira, evidentemente. O Fies não podia crescer naquele ritmo. E se é verdade a linha de raciocínio da nota do Palácio do Planalto — de que o TCU fez indevidamente a “penalização de ações administrativas que visavam a manutenção de programas sociais fundamentais para o povo brasileiro, como o Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida” — por que o governo ampliou programas que, passada a eleição, seriam cortados? Como sempre os argumentos não ficam em pé.
Todo esse episódio acabou fortalecendo uma lei sobre um tema que parece árido demais para mobilizar tanto o país. Essa reação fala a favor do Brasil. A minha geração de jornalistas de economia tem especial apreço pela Lei de Responsabilidade Fiscal porque viu a desorganização deixada pelos militares e a lenta construção das instituições fiscais na democracia que tornou possível o Plano Real e depois o consolidou. Sabe o descalabro que era a conta de movimento, que permitiu até 1986 o uso do Banco do Brasil para pagar despesas orçamentárias, e a farra que foi o uso dos bancos estaduais pelos governos dos estados. Por isso o princípio da proibição de que bancos estatais emprestem para seu controlador é entendido como um dos pilares da lei.
A boa gestão pública está em se antecipar aos problemas. O que o governo Dilma fez foi negar a crise. Até março deste ano ela estava falando que a crise não tinha a gravidade “que alguns dizem”. Como é então que o argumento agora é que no ano passado foi preciso fazer o que foi feito para garantir programas “fundamentais para o povo”? Cada argumento novo joga o governo em mais um mar de contradições. O melhor seria fazer silêncio e não tentar explicar o inexplicável.
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