Tristeza
e desânimo é o que nos causa o fato de que, há exatamente 57 anos do golpe de
1964, quepes e fardas voltem a ocupar as páginas dos jornais e hoje também as
redes sociais. Com 81 anos de idade, pergunto-me quando é que nossa República
será capaz de se autogovernar dentro dos parâmetros da democracia, descartando
a tutela militar? Ao longo dos 33 anos que se seguiram à redemocratização de
1985, acreditamos que caminhávamos nessa direção. Achávamos que o
profissionalismo, a não interferência na política, passara a ser a marca da
atuação de nossas Forças Armadas. Mas o fatídico tuíte do comandante do
Exército, general Villas Bôas, em 3 de abril de 2018, pressionando o STF às
vésperas do julgamento de um habeas corpus em favor de Lula, veio nos
desenganar. As Forças Armadas, particularmente o Exército, continuavam, e
continuam, convencidas de seu papel tutelar da República, expresso, segundo
elas, nas palavras “garantias dos poderes constitucionais” do artigo 142 da
Constituição.
A situação agravou-se quando os militares endossaram a candidatura do capitão indisciplinado e entraram em massa, de generais a oficiais subalternos, nos quadros governamentais, seja por ideologia, seja por fisiologismo, seja pelas duas coisas. Os alertas sobre o perigo que isso poderia representar para a unidade e a imagem das Forças Armadas não foram ouvidos. Ao longo de dois anos, ficaram claros os sinais de que o presidente buscava apoiar-se nelas, até para desafiar os outros poderes da República. Só aos poucos a ficha foi caindo e chegou ao ponto de conflito aberto quando, nesta semana, os comandantes das três Forças decidiram colocar seus cargos à disposição, sendo, a seguir, demitidos para que o governo salvasse a própria cara. Não me lembro de caso semelhante na história da República.
O
chefe do Executivo está no pior momento de seu mandato até agora, torpedeado
pela volta de Lula à disputa política, pela adesão da população à vacinação e
pela postura do Centrão, menos submissa e menos fisiológica do que esperava. A
tentativa de fazer uso político do Exército, embutida na expressão “o meu
Exército”, assustou o alto-comando da Força. Começou a ficar claro que os
militares tinham embarcado numa canoa furada, capaz de afundar a corporação. A
reação ficou clara na frase do então ministro da Defesa, general Fernando de
Azevedo e Silva, segundo a qual as Forças Armadas são instituições do Estado, e
não de governos. Até mesmo o general vice-presidente alertou: nos quartéis, quando
a política entra por uma porta, a disciplina sai pela outra. A politização leva
à divisão e à quebra da disciplina, baluarte de qualquer organização militar. O
grande erro político de João Goulart em 1964 foi ter apoiado os sargentos e os
marinheiros.
Em
que tudo isso vai dar, não se sabe, mas é positivo que os militares pareçam ter
percebido o erro que cometeram. Se persistir em seus propósitos, o presidente
ficará cada vez mais vulnerável. E só vai piorar a situação se insistir também
em cortejar o apoio das polícias militares, tema também delicado para as Forças
Armadas. Dito isso, nosso problema central persiste: quando nossa República
será capaz de resolver suas crises sem dar margem à interferência militar?
Desde o início, ela admitiu em todas as suas constituições, exceto na do Estado
Novo, um papel político para os militares. Interprete-se esse papel como se
quiser, mas ele está lá. E crises é o que não nos faltará levando em conta a
dimensão de nossa desigualdade social, os mais de 60 milhões de brasileiros que
precisaram do auxílio emergencial. Ou a República acaba com a desigualdade, ou
a desigualdade inviabiliza a República, impedindo-a de se autogovernar.
*Historiador
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