- Horizontes Democráticos
Há 50 anos, o Chile vivia uma experiência política extraordinária. Foi o período em que Salvador Allende governou o país, depois de ter vencido as eleições em 1970 e, quase três anos depois, ser deposto por um golpe militar, em 11 de setembro de 1973.[1] Tão logo se começa a rememorar o período vêm à mente as imagens que correram o mundo ao registrarem o assalto ao Palácio La Moneda, em Santiago. Cenas chocantes especialmente em se tratando de um país que cultivava, interna e externamente, a imagem de estabilidade política e solidez institucional.
O
que ocorreu para que se chegasse a tal ponto? Até hoje, 50 anos depois, esta
pergunta é feita e há muitas respostas para ela, tanto quanto as incógnitas que
permanecem submersas. Diversos aspectos são apresentados como fatores
explicativos. Dentre eles, o fato de que Allende tornou-se Presidente mas seu
apoio eleitoral era minoritário, uma vez que havia sido eleito com apenas 36% dos
votos e sua posse aprovada, em segunda instância, pelo Congresso; que as forças
políticas da época se dividiam em três — os liberais e nacionalistas, a
democracia-cristã e o eixo socialista-comunista —, com projetos de sociedade
distintos, o que dificultou a convivência e o equilíbrio do sistema político ao
extremarem suas posições; que as reformas implementadas por Allende,
aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas, evidenciaram-se
excessivamente maximalista e o caminho adotado para realizá-las, por meio do
Executivo, acabaram abrindo espaço para a contestação e a ingovernabilidade;
que o apoio dos EUA à oposição e, por fim, ao golpe de Estado, não deixam
dúvidas a respeito da transcendência do que se passou no Chile, um dos palcos da
confrontação acionada pela “guerra fria”.
Os
três anos nos quais Allende governou o Chile são identificados como a experiência
chilena, que mesmo depois do golpe militar continuou a provocar uma
sensação paradoxal, constituindo-se numa referência positiva e negativa em
razão do fracasso da chamada via chilena ao socialismo, que acalentava a ideia
de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o
aprofundamento da democracia. Tratava-se de uma proposição inédita, de
repercussão universal.
Por muito tempo fez-se uma discussão reducionista da via chilena ao socialismo. Para alguns era mais uma ilusão reformista; para outros, ensaiava-se uma perspectiva nova de construção do socialismo. Entre os protagonistas, as avaliações posteriores tenderam a reproduzir a divisão que habitava a esquerda chilena do período Allende.[2] Imerso nesse antagonismo anacrônico, onde inutilmente se busca uma “saída” para o governo Allende, o passado permanece envolto numa bruma que não se dissipa.
Em
diversas oportunidades Allende usou a expressão via democrática para
qualificar melhor a opção que a esquerda deveria seguir no Chile. Esta
expressão, para Allende, enfatizava a forma de luta e o comportamento político
que a esquerda deveria adotar no exercício do poder. Foi neste sentido que suas
referências à via democrática acabaram por selar uma identificação entre processo (experiência
chilena) e projeto (via chilena ao socialismo) que, juntos,
passaram a ser vistos como uma experiência prática de aplicação daquilo que nas
perspectivas teóricas da esquerda ocidental se chamava — ainda que de uma
maneira um pouco difusa — de via democrática ao socialismo.
No
entanto, a história não corrobora esta identificação. Mesmo que Allende jamais
tenha se afastado dos procedimentos democráticos, a experiência chilena apenas
pode ser compreendida como uma tentativa de realização prática dos pressupostos
da via chilena, uma vez que o projeto que a embasava nem sempre fora
compreendido no interior da UP como uma via democrática ao socialismo. A
identificação entre via democrática e via chilena ao socialismo não se
configurou como uma linha política clara e hegemônica nem no governo nem entre
os partidos que o apoiavam. Tratava-se de uma estratégia bastante inovadora
para os dois principais partidos da esquerda chilena, o PC e o PS. Para ambos,
a superação do Estado burguês no processo revolucionário chileno se concluiria
com o estabelecimento da ditadura do proletariado, única situação em que se
poderia pensar a implantação do socialismo. Para o PC, era necessário chegar ao
momento da ruptura mantendo a institucionalidade; para o PS, era preciso
resolver a questão do poder e formar um Estado paralelo fundado no “poder
popular”. Em suma, para os dois partidos, a particularidade chilena
confirmaria, mais uma vez, as leis universais da revolução.
Está
claro, portanto, que aquela esquerda concebia a via chilena apenas como um
elemento de retórica, um slogan, um artifício de unidade e
mobilização. A via chilena constituiu-se apenas numa “anunciação” e não numa
aplicação da via democrática para o socialismo. A cultura política convencional
que governava a cabeça da esquerda chilena — mas não apenas dela — não permitiu
que se pensasse na ideia de que a democracia era ou poderia ser “a via” do
socialismo. Isto somente iria começar a ser formulado em outro contexto e em
função das lições que foram extraídas do golpe de 1973.[3]
Esse
caráter anunciador do projeto da via chilena, mais intencional do que dirigente
de uma grande política, perdeu poder de atração e eficácia no decorrer do
governo, diluindo-se na imperiosa necessidade de manter unida a coalizão de
esquerda como forma de sustentação política. Do ponto de vista prático, o que
ocorreu foi que a via chilena ao socialismo de Allende acabou por reduzir-se a
um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado.
Mesmo Allende supunha que o processo se encaminharia para uma situação de
ruptura na qual se poderia transformar o Estado vigente em Estado antagônico ao
capitalismo. A via socialista deveria ser capaz, nestas circunstâncias, de
articular simultaneamente criação socialista e resolução do problema do poder
como processos construtivos de desarticulação da dominação capitalista. Aqui
ressoam ecos fortes do “socialismo de esquerda europeu” que, à época,
criticando o comunismo soviético e a socialdemocracia, procurava encontrar uma
alternativa que vinculasse reforma e revolução. Mas o resultado foi outro:
fraturada, a UP não executou nem desenvolveu a via chilena ao socialismo e o
que nela se anunciava como uma possibilidade de caminho democrático ao
socialismo.
A
experiência chilena de Allende e da UP evidencia que foi impossível seguir
adiante sem a construção de consensos e de instituições que dessem suporte às
transformações estruturais colocadas em curso. Seu fracasso deixa explícito que
aquela era uma revolução que se tornou impossível por conta da cultura política
convencional que marcava a esquerda da época diante do caminho escolhido:
transitar ao socialismo por meio da democracia.
De um Chile a outros: imagens da experiência chilena
Toda
metáfora quer dar corpo concreto a uma impressão difícil de exprimir. Sua forte
produtividade heurística, a despeito das imprecisões, cumpre um papel de
síntese, procurando assegurar, por meio de um custo muito pequeno, o máximo
rendimento comunicativo. Em relação à experiência chilena, alguns analistas se
mantiveram prisioneiros à imagem da tragédia como síntese daquele processo,
predeterminado ao fracasso. A história aqui é vista como uma aproximação a um
fim inexorável, o que impossibilita que se investigue as estratégias, cálculos
e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores envolvidos, dimensões
sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas
dificuldades e seus limites.
O
cientista social Tomás Moulian buscou outra angulação. Para ele, o período da
UP expressou simultaneamente “festa e drama”, foi “excitante e efervescente”
bem como “doloroso e traumatizante”.[4] Havia
uma dimensão positiva, de festa popular — uma dimensão erótica —, mas também
uma face negativa, marcada pela imposição do regime ditatorial que sucedeu ao
golpe de Estado. “Festa e drama” eram duas caras de uma mesma moeda. A festa
assumia “a forma de uma catarse vingativa, adotava o caráter de uma vingança
por anos de sofrimento, silêncio e impotência”; “não era alegre, tinha a
gravidade dos ritos, onde o povo se assume como juiz”; “expressão de uma pulsão
escatológica” em que se acreditava ter chegado o “momento do acerto de contas”,
momento definidor em que o povo capturava o futuro para si, imagem condensada
na ideia de “revolução triunfante”. O drama, por sua vez, materializou-se na
“encarniçada batalha política”, na emergência de uma “situação de crise
catastrófica gerada e produzida (no seu sentido forte) pelas decisões adotadas,
em diferentes conjunturas do processo, pelos atores em conflito”. Nessa
leitura, a crise de 1973 é ainda vista como derrota da UP, evitando-se aludir
ao fracasso de um governo conduzido pela esquerda.
Quase
10 anos depois, Moulian retoma o turbilhão de imagens para recontar a história
da UP, agora no contexto do “transformismo” pós-ditatorial[5].
No novo contexto, o período Allende representa um Chile romântico, o avesso do
Chile da Concertación[6],
onde predomina a negociação, o pragmatismo político, o consumismo, etc. O
romantismo da UP assumiria um “pathos trágico”, típico da
adolescência. Seu desfecho, um “doloroso aborto”, imagem que sugere a explosão
de violência que se impôs depois de 1973.
Para
Moulian, o Chile “transformista” dos tempos da Concertación,
evidenciando outra cristalização identitária, equivoca-se ao criar o mito da
transição modelar da mesma forma que se equivocou ao mistificar o “Chile
democrático” anterior à catástrofe de 1973. “Verniz e aparência”, diz o nosso
autor: “a estabilidade da democracia chilena até a década de sessenta
sustentou-se mais em razão de suas imperfeições do que de suas perfeições”. A
estabilidade chilena, como “nossas ilusões”, continua, não se baseava “no
enraizamento da democracia na cultura, nos valores incorporados com força quase
atávica”[7].
O
Chile do final da segunda década do século XXI já é inteiramente outro. O
período da Concertación se foi com a alternância de poder com
a direita democrática. Mas, o Estado de “mal-estar social”, marcado por
extensas desigualdades e a manutenção da Constituição de 1980, herdada do
período Pinochet, acabaram por gerar o que ficou conhecido como o “estallido” de outubro de 2019,
quando multidões desceram às ruas de forma tão imponente quanto surpreendente.
Essa explosão social forçou o acordo político que iria dar sustentação à
realização de um Plebiscito quase um
ano depois no qual se aprovou os termos de realização da eleição e
funcionamento de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de
uma nova Constituição.
Afirmar
que há uma identidade entre essa “irrupção de massas” e a vitória de Allende em
1970 alimenta equívocos. A eleição de Allende em 1970 não tem nada semelhante
ao outubro de 2019. A catarse dos cânticos da UP nas ruas de Santiago, em
outubro de 2019, pode iludir a quem pensa em fazer a História voltar atrás. No
prefácio a um livro coletivo sobre os 50 anos da UP[8] Tomás
Moulian chama a atenção para a impossibilidade de se repetir aquele processo.
Também cantada nas ruas em 2019, “El baile de los que sobran”, do
álbum Pateando piedras (1986), da extinta banda, Los
Prisioneros, talvez sinalize mais realisticamente o que se pensa
ultrapassar e o que se ambiciona alcançar.
Hoje,
o Chile de Allende e da UP está bastante distante do universo político que anima
os jovens que saem às ruas e pedem mudanças estruturais para o País. Se há
alguma atualidade daquele Chile nos dias de hoje ela não está na expectativa de
se retomar os pressupostos do projeto de construção do socialismo por meio da
democracia, mas na compreensão dos dilemas políticos que, hoje, vivenciamos e
que assumem dimensões universais. A experiência chilena deve ser vista,
portanto, como um ponto de inflexão na necessidade de superação da cultura
política da revolução, sem a qual não haverá possibilidade de redirecionamento
das políticas da esquerda para o enfrentamento dos problemas e impasses da
democracia, entendida como a projeção civilizacional do nosso tempo, capaz de
garantir transformações históricas sem a perda das liberdades e das individualidades.
O fracasso da experiência chilena demonstra que o tempo da revolução é
incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado pela
urgência da tomada do poder, o segundo reconhece que as transformações
históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no
interior de uma moldura democrática.
Notas:
[1] Allende
foi candidato pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que tinha
como eixo os Partidos Comunista (PC) e Socialista (PS), mais os Radicais, o
partido Socialdemocrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação
Popular Unificado (MAPU); o golpe militar foi liderado pelo general Augusto
Pinochet que imporia uma ditadura por 17 anos.
[2] AGGIO,
A. Democracia e socialismo: a experiência chilena. Curitiba:
Appris, 3ª. Ed. 2021.
[3] O
início do reconhecimento dessa perspectiva se dá nos três artigos de Enrico
Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano (PCI), publicados em 28 de
setembro e 5 e 12 de outubro de 1973, em Rinascita, que dão corpo
ao chamado “compromesso storico” entre o PCI e a DC. Ver Vacca, G. L`Italia
contesa – comunisti e democristiani nel lungo dopoguerra (1943-1978).
Venezia: Marsilio, 2018, p. 266 (há uma tradução brasileira no prelo pela
Editora da Unicamp).
[4] MOULIAN,
T. “La Unidad Popular: fiesta, drama y derrota”. In GAZMURI, J., Chile
en el umbral de los noventa. Santiago: Planeta, p. 27-41, 1988.
[5] MOULIAN,
T. Chile Actual, anatomía de un mito. Santiago: LOM/Arcis,
1997.
[6] A Concertación
de los partidos por la democracia nasce no plebiscito de 1988
como Concertación por el No. Foi formada por diversas forças
oposicionistas, menos o PC. Em 1990, vence as eleições presidenciais com Patricio
Aylwin. Vários Presidentes eleitos pela Concertación governaram
o Chile sucessivamente até 2010.
[7] MOULIAN,
T., 1997, p. 166.
[8] HENRY,
R. A., SALÉM V., J. y CANIBILO R., V. (comps.) La vía chilena al
socialismo 50 años después, Tomo II. Buenos Aires: CLACSO, 2020. http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20201201032252/La-via-chilena-al-socialismo-Tomo-II.pdf
(Publicado
simultaneamente em Estado da Arte, 02.04.2021:
https://estadodaarte.estadao.com.br/chile-allende-aggio-horizontes/)
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