O
delegado do Dops quis saber se eu era comunista. “Não”, respondi. “Gostaria de
ter sido communard”, complementei. O beleguim, apesar de visivelmente
desconcertado pelo complemento, não deu o braço a torcer, e foi dormir sem
perguntar e muito menos saber o que diabos eu queria dizer com “comu...comunar”.
Se mais instruído e safo, teria perguntado: “E por que não foi isso aí?” Ao que
eu responderia: “Porque não tinha idade.”
Não
tinha mesmo. Um século então nos separavam, amime ao delegado, da insurreição
dos communards parisienses, em 1871, a cujo sesquicentenário, rolando até o dia
28 de maio, nossa mídia não tem dispensado a devida atenção.
Pois
é, os franceses brindando ao aniversário da mais espetacular rebelião popular
europeia do século 19 e os militares daqui encanados em mais um aniversário da
maior desgraça por eles infligidas ao País no século passado: o golpe de 64,
que, aliás, o novo ministro da Defesa prefere chamar de “movimento”, eufemismo
combinado entre seus pares para maquiar a história.
Maquiar, perdão, é outro eufemismo; a palavra certa é falsificar.
Sou
velho entusiasta da Comuna de Paris, que foi a réplica da arraia-miúda à
revolução burguesa de 1789. Alguns a confundem com as agitações sociais de 20
anos antes, celebrizadas por Marx (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) e Flaubert
(A Educação Sentimental). Compreende-se. A sarrafusca de 1848-51 foi uma
espécie de trailer ou ensaio geral do que explodiria em 18 de março de 1871.
Lembrei-me
da Comuna de Paris ao ler que, na manhã do último dia 23, motoboys e motoristas
de aplicativo, auto identificados como “Frente Povo Sem Medo ”, interditaram as
avenidas João Dias e Marginal Tietê, na capital paulista, exigindo auxílio
emergencial decente, vacinas já e o fim da barbárie imposta ao Brasil por
Bolsonaro.
Povo
sem medo e decidido era o parisiense. Melhor dito, a classe operária de Paris
da segunda metade do século passado. Derrubaram o governo, ocuparam durante 72
dias acidade previamente evacuada, e implantaram o primeiro autogoverno de
caráter proletário e popular, em plena ascensão do capitalismo e floração dos
ideais socialistas. Derrotado na guerra contra a Prússia e com tropas de
ocupação rufando tambores por todo canto, o caótico Estado francês caiu nas
mãos de trabalhadores e camponeses, as classes sociais mais a perigo, sempre,
daquela vez apoiadas por setores da burguesia insatisfeitos com o governo de
fachada de Napoleão 3º.
Sem
medo, afrente popular impôs uma série de medidas de tremeras bases de qualquer
república. De cara, adotou novamente o calendário revolucionário implanta doem
1793 e aboli doem 1805. (Por ele, os parisienses estariam agora em pleno
germinal, não na primavera). Separada do Estado, a Igreja deixou de ser
subvencionada pelo erário. Espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados
pelo Tesouro.
Tem
mais: apena de morte foi abolida, assim como o serviço militar obrigatório,
dissolveu-se o exército regular, instituiu-se a igualdade entre os sexos,
extinguiu-se o trabalho noturno. Residências vazias foram desapropriadas e
reocupadas, e em cada residência oficial foi instalado um comitê para
organizara ocupação de moradias.
Ainda
não acabou. Todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a
assistência pública e os telégrafos. A educação tornou-se gratuita, secular e
compulsória. Além de revitalizar o ensino noturno, a Comuna adotou turmas mista
sem todas as escolas e duplicou o salário dos professores.
Todos
os descontos nos salários foram abolidos e a jornada de trabalho reduzida, mas
não às oito horas por muitos pleiteadas. Os artistas passaram a auto gerenciar
os teatros e editoras. Oficinas que estavam fechadas foram reabertas para
instalação de cooperativas.
Casamentos,
testamentos, adoções e a contratação de advogados deixaram de ser cobrados. O
monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários também
viraram letra morta, e o cargo de juiz tornou-se eletivo.
Qualquer
estrangeiro podia fazer parte da Comuna, com igualdade de direitos. Nela havia
belgas, italianos, húngaros, poloneses, e outros mais, da Europa e do resto do
mundo, teria atraído se tivesse durado mais tempo ou se consolidado como um
Estado permanente.
Porque
o utópico regime da Comuna não vingou? Por inexperiência dos communards, que nem
tiveram tempo de estendê-lo e testá-lo no resto da França, e por erro sem
questões estratégicas envolvendo a proteção d acidade contra as tropas de Adolf
Thiers, comandante do poder estabelecido, em seguida reforçadas por pelotões
prussianos. O imaginário ocupou-se menos da Comuna do que se podia esperar. Os
personagens da novela Bola de Sebo, de Guy de Maupassant, filmada algumas veze
seque até um western (No Tempo das Diligências) inspirou, não fugiam de Paris e
seus communards mas de Rouen e das tropas invasoras. De todo modo, Maupassant retrata
à perfeição os burgueses que, na mesma época, se escafederam da capital
francesa, com medo da plebe empoderada.
O
russo Ilya Ehrenburg escreveu um romance ambientado na Comuna, O Cachimbo do
Communard, que também virou filme, na Rússia. Os russos sempre foram, et pour
cause, fascinados pela Comuna de Paris. A dupla Grigori Kozintsev-Leonid
Trauberg dirigiu um dos dois melhores filmes sobre a Comuna, A Nova Babilônia
(1929). Ooutroé La Com mune( Paris ,1871), do inglês PeterWatkins.
Curiosamente, o personagem egresso da Comuna e em fuga dos prussianos mais conhecido do cinema ainda é a mestre-cuca Babette, que se exilou e deu bem numa cozinha da Dinamarca.
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