Folha de S. Paulo
Diversidade étnica que faz do brasileiro um
cidadão universal e facilidade para se obter documentos contribuem para o país
ser base de espiões
Fato espantoso: enquanto o filme "O Agente Secreto" fazia sucesso em Cannes, a Polícia Federal desmontava uma rede de espionagem russa no país. O choque deve-se à raridade do fato entre nós. Mas persiste na memória coletiva o caso vexaminoso dos nove chineses que, três dias após o golpe de 64, foram presos como espiões, supostamente armados com agulhas envenenadas, prontos para atacarem não se sabia o quê (eram agulhas de acupuntura). Torturados, condenados a dez anos de prisão, confirmou-se depois que eram uma delegação comercial de algodão. Um escândalo diplomático, fiasco dantesco, prenúncio das violências da ditadura.
Agora, porém, se trata da Polícia Federal, a
mesma que desbaratou a trama golpista de Bolsonaro e tem granjeado respeito
social, até com elogios do "Times". Cabe perguntar, aliás, por que
não tomar como modelo de polícia o da federal, em que inteligência parece ter
se sobreposto à violência pura e simples. Foi precisamente a contrainteligência
federal que descobriu os espiões adormecidos.
Novelas de espionagem como "O Agente
Secreto", de Joseph Konrad, e "O Homem que foi Quinta-Feira",
de G.K. Chesterton, são boa literatura alegórica. Mas o caso
desses russos é parente folhetinesco mais próximo de thrillers como a série
"Os Americanos", uma das melhores programações televisivas deste
século, que dramatiza um casal disfarçado para dirigir, em plena Guerra Fria,
uma rede de espionagem da KGB nos EUA. São propriamente "moles"
(toupeiras), isto é, infiltrados com identidades americanas e atividades
clandestinas. Como toupeiras, entocam-se à espera de um chamado à ativa.
Extraordinário que pareça, esse é em linhas
gerais o roteiro dos russos desentocados pelos federais.
Questão intrigante é saber o que haveria para ser espionado num país sem
alta relevância na geopolítica mundial, nos jogos de guerra ou na vanguarda
tecnológica. A espionagem eletrônica dos americanos no gabinete de Dilma
Rousseff visava a bisbilhotar conversas políticas. No passado, a
obsessão de Jânio Quadros em invadir a Guiana produziu o factoide de que um
submarino desembarcaria espiões na praia de Amaralina, em Salvador. Mas Jânio
era uma extravagância republicana, assim como as suas venetas.
Agora os espiões são de carne e osso, real é o laço que os
federais jogaram na cabeça de um deles, já que os outros se escafederam, não
fossem treinados no tempo em que Putin era mestre-espião da KGB. O que queriam mesmo do
Brasil? A resposta tem um lado lisonjeiro, outro desolador. Primeiro, a
diversidade étnica faz do brasileiro cidadão universal em termos de aparência
física e nomes próprios. Aqui, um leve sotaque não aponta ninguém como
estrangeiro. Em segundo, a obtenção de documentos é bastante flexível, ainda
mais com a facilitação corruptiva de cartórios do interior. Os russos tinham
certidões de nascimento autênticas, datadas de muito tempo atrás.
Segredos vitais pertencem a potências
nucleares, nada a se espionar entre nós, portanto. Mas um mestre do gênero,
estilo John Le Carré, certamente aproveitaria esse imbróglio para um thriller
tropical, algo como "os espiões que não espionavam". Senão, com essa
facilidade de trampolim, poderíamos ser um berçário de arapongas. Reborn, daqui para o mundo.
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