Por Rodrigo Martins / CartaCapital
A condenação de Bolsonaro rompe com a
secular tradição de impunidade aos golpistas no País, avalia Lenio Streck
Com um histórico de 15 golpes de Estado, tentados ou consumados, desde a Proclamação da República, em 1889, o Brasil parece finalmente prestar contas com seu passado. “Após a condenação de Bolsonaro e seus comparsas, a chance de sofrer mais uma investida diminui bastante”, avalia o advogado Lenio Streck, procurador de Justiça aposentado, professor de Direito Constitucional da Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Em entrevista a CartaCapital, ele afirma que o Supremo Tribunal Federal agiu dentro dos limites constitucionais e rebate as teses levantadas pela defesa dos acusados, e endossadas no voto divergente do ministro Luiz Fux. “Nenhuma democracia madura comete haraquiri, perdoando quem tenta derrubá-la.”
CartaCapital: Como o senhor
avalia o voto do ministro relator?
Lenio Streck: Foi
mais detalhista do que eu esperava. Alexandre de Moraes ficou com uma
responsabilidade enorme, em face das críticas e pressões externas, e fez um
esforço hercúleo para ser objetivo e expor, de forma didática, todas as provas
que pesam contra os réus.
CC: O Supremo tem competência
para julgar Bolsonaro?
LS: Sim,
com certeza. Em março deste ano, o STF decidiu, por 7 votos a 4, que a
prerrogativa de foro, para os casos de crimes cometidos no cargo e em razão
dele, deve ser mantida após a saída da função. O ministro Fux não deveria ter
trazido de volta uma tese vencida no plenário. A chance de anular o processo
com base nesse argumento é zero, isso não passa de retórica política. Da mesma
forma, o Supremo optou por dividir seu grande volume de processos em duas
turmas, formadas por cinco ministros cada uma, para agilizar os julgamentos.
Somente se houver dois votos divergentes o caso é levado ao plenário. A Corte
pode sempre mudar o seu regimento interno, que tem valor de lei processual,
segundo a Constituição. A propósito, se Fux ficar isolado nessa divergência,
ela não terá efeito algum. É como se não existisse: 4 a 1 é o mesmo que 5 a
zero.
CC: Fux sustentou que não há
golpe de Estado sem deposição de governo.
LS: Essa
é uma tese batida, trivial. O crime é de tentativa de golpe de Estado. Desde a
Constituição de 1824, no Brasil Império, usa-se o verbo tentar na definição. A
propósito, isso não é uma invenção brasileira. No mundo todo, funciona assim:
atos de planejamento já fazem parte da execução do crime. Se o golpe fosse
bem-sucedido, nem sequer haveria este julgamento.
CC: A defesa de alguns réus
pediu que o crime de tentativa de golpe de Estado absorva o de abolição
violenta do Estado Democrático de Direito. Esse argumento tem base jurídica?
LS: Eu
participei da elaboração dessa lei, acompanhei toda a discussão. São tipos
penais distintos. Um trata da ofensiva para derrubar um governo legitimamente
eleito, como tentar impedir a posse do presidente Lula. O outro refere-se a
ações destinadas a restringir ou impedir o exercício dos poderes
constitucionais, mediante violência ou grave ameaça, como uma intervenção para
fechar o Tribunal Superior Eleitoral ou a devastação das sedes dos Três
Poderes. Um crime só pode ser absorvido por outro, mais grave, quando o
primeiro é um meio necessário para a prática do segundo.
“Ao aprovar uma anistia, o Congresso
semeia a próxima crise institucional”
CC: A defesa de Bolsonaro
alega que Moraes não poderia julgá-lo, por ser um dos alvos da trama golpista e
pelo histórico de animosidade entre ambos. Cabe pedir o impedimento do juiz se
o próprio réu semeou esse conflito?
LS: Um
réu não pode escolher o seu juiz. Bolsonaro não entrou em confronto com Moraes
por uma desavença pessoal – ele provocou o embate justamente porque o ministro
era o relator do processo. Se outro ministro assumisse o caso, como Flávio Dino
ou Gilmar Mendes, ele também se tornaria alvo. No Direito, há um princípio
claro: “ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza”. Um sujeito acusado de
matar os pais não pode, por exemplo, pedir clemência “por ser órfão”. É por isso
que Moraes não está impedido de julgar o ex-presidente, e o STF já decidiu
sobre isso.
CC: Os réus tentaram a todo custo
invalidar a colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid.
Considerando as robustas provas reunidas pela Polícia Federal e pelo próprio
STF, a delação seria essencial para a condenação ou apenas reforça um conjunto
probatório já consistente?
LS: A
delação não é prova, mas sim um meio para a obtenção de provas. Não se anula o
que ficou comprovado. Fizeram muito barulho por nada.
CC: Bolsonaro cumprirá, de
fato, pena em regime fechado? Ou há possibilidade de ele apresentar
justificativas médicas para obter prisão domiciliar, como aconteceu com o
ex-presidente Fernando Collor?
LS: Esse
é um ponto que o STF terá de decidir, uma vez que também é responsável pela
execução da pena. No caso de Collor, criou-se uma jurisprudência benevolente:
depois daquela decisão, qualquer condenado com mais de 70 anos pode pleitear o
mesmo benefício. O Supremo deveria reavaliar isso. Veja o exemplo da Itália: a
deputada Carla Zambelli alegou necessidade de cuidados médicos, e o Estado
ofereceu tratamento dentro da prisão. O regime fechado não prevê prisão
domiciliar. Embora a lei não garanta cela especial após condenação definitiva,
defendo que Bolsonaro tenha direito a uma, até por coerência com um parecer que
elaborei contra a transferência de Lula para Tremembé em 2019. Um ex-presidente
detém segredos de Estado, é preciso protegê-lo. Mas cela especial não é prisão
domiciliar.
CC: É a primeira vez que
oficiais de alta patente das Forças Armadas e um ex-presidente da República são
condenados por tentativa de golpe de Estado no Brasil. O senhor enxerga esse
julgamento como uma espécie de acerto de contas com o nosso passado?
LS: Sim,
vejo dessa forma. Desde a Proclamação da República, em 1889, o Brasil enfrentou
15 tentativas de golpe de Estado – algumas bem-sucedidas, outras não. Após a
condenação de Bolsonaro e seus comparsas, a chance de sofrer mais uma investida
diminui bastante.
CC: Enquanto os golpistas
eram julgados, bolsonaristas e líderes do Centrão negociavam uma anistia. Caso
seja aprovado um novo perdão para quem atenta contra a democracia, que resposta
o senhor espera do STF?
LS: Do
ponto de vista jurídico, esse é um tema relativamente simples. O problema é
político. Anistiar quem tentou um golpe de Estado é inconstitucional, fere a
Carta de 1988 e a jurisprudência do Supremo. Nenhuma democracia madura comete
haraquiri, perdoando quem tenta derrubá-la. Juridicamente, não há dúvida. O
impasse virá se o Congresso aprovar: Lula deve vetar, e o Parlamento pode
derrubar o veto. A seguir, o STF será acionado e terá de assumir o ônus de
invalidar essa decisão. A responsabilidade por uma eventual crise será dos
parlamentares, que, mesmo sabendo da inconstitucionalidade da proposta,
insistem em esticar a corda.
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital,
em 17 de setembro de 2025.
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