O grande legado do século XX parecia ser a consagração absoluta da democracia como valor permanente, inegociável, amplo, universal. E aí estamos nós, com a cara do mundo contemporâneo estampada nas faces de Donald Trump, Vladimir Putin, Xi Jinping e Benjamin Netanyahu. Nem o mais radical pesadelo de um democrata pessimista poderia traçar roteiro pior.
Com o debacle da utopia socialista a
convergência parecia se dar em torno do liberalismo com algum tempero social.
Liberdade indivisível: individual, política, econômica. Combinada com políticas
públicas eficientes, responsáveis e sustentáveis que contrabalançassem a
inevitável produção, pela economia de mercado, de desigualdades sociais. Como
pano de fundo: um mundo integrado, com economia globalizada e livre, paz permanente
e sólida, governança compartilhada e multilateralismo no tratamento de questões
comuns como meio ambiente, clima, fluxos migratórios e combate à miséria e à
fome.
Nada mais distante do mundo atual. E as
cartas embaralhadas. Enquanto o presidente dos EUA, suposta pátria do
liberalismo, promove uma verdadeira balbúrdia desorganizadora em escala global,
destruindo o livre comércio e a integração econômica, alimentando os conflitos
da Ucrânia e de Gaza e atacando antigos aliados como Brasil e UE, Xi Jinping,
líder da próspera e autoritária experiência de capitalismo de Estado chinês,
discursa nos fóruns internacionais contra o protecionismo econômico e a favor
do multilateralismo e da paz.
Capacidade de diálogo, construção de
consensos na diversidade, sensatez, equilíbrio e ponderação parecem não terem
morada na cena contemporânea. No Brasil e no mundo, predominam a intolerância e
a radicalização. O ódio é disseminado com uma força inédita. A democracia pressupõe
o mínimo de coesão social, pontes de diálogo, alguma unidade nacional,
tolerância com os diferentes, aceitação da legitimidade dos atores políticos
adversários e do direito de ocuparem o poder ao vencerem as eleições. Mas não.
Não é um fenômeno só nas elites. Há um ódio
presente dos nativos contra imigrantes árabes, africanos e latino-americanos
enraizado nas sociedades desenvolvidas. Há um ódio destrutivo entre adversários
políticos transformados em inimigos de guerra.
Não há mediações. Não há percepção sobre as
contradições da realidade. Não há equilíbrio e sensatez. Ou você está com o
xenofobismo ou com as imigrações descontroladas. Ou você dá razão a Trump ou
defende o regime chinês. Ou você defende integralmente Israel ou a Palestina,
com Hamas e tudo. Ou você está com Alexandre de Moraes ou com Bolsonaro. Quem
pensa criticamente e pondera os vários vetores da vida - que são tudo, menos
lineares, líquidos e certos – é reduzido logo a um isentão claudicante que fica
em cima do muro e não se posiciona.
A democracia contemporânea está dando mostras
de disfuncionalidade frente a sociedade das bolhas radicalizadas e da guerra
fraticida nas redes sociais. Vejam a dificuldade de formação de governos
majoritários com boas condições de governabilidade na França e Alemanha, no
Japão, Portugal e Brasil.
O sensato, o ponderado, é um quase ingênuo.
Um peixe fora d’água. Minhas referências políticas, no Brasil e no Mundo, desde
os idos de 1976, quando comecei na militância política e iniciei minha vida
pública, eram Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Mário Covas, FHC,
Felipe González, Mário Soares, Enrico Berlinguer, Bill Clinton, Tony Blair,
Obama. Fico imaginando se chegassem hoje no Brasil, onde se situariam no atual
quadro político-partidário? Acho que estariam como eu: perplexos, pessimistas e
sem lugar.
Não quero ser nem o pessimista amargo, nem o
otimista ingênuo de Ariano Suassuna. Quero seguir seu conselho e ser um
realista esperançoso. Meu personagem predileto, Dom Quixote, me ensinou: “...
pois não é possível que o mal, como tampouco o bem, durem para sempre. Assim,
tendo o mal persistido por tanto tempo, o bem deve estar próximo”.
Fora isto, para o mundo que eu quero descer com minha isenção crítica, equilíbrio, dúvidas e pretensa lucidez.
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