CartaCapital
Trata-se de uma reparação simbólica às
vítimas dos heróis de Bolsonaro
Na porta de seu gabinete, o então
deputado Jair
Bolsonaro mantinha um cartaz que dizia que “quem busca osso é
cachorro”, numa ironia aos esforços para encontrar os restos mortais das
vítimas no Araguaia. Em sua sala, exibia com orgulho as fotos dos generais que,
durante 21 anos, mantiveram com repressão, censura e morte a ditadura.
Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro prestou uma homenagem a um dos torturadores da ex-presidente, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na Presidência, o líder do complô golpista reuniu-se com a viúva do coronel no Palácio do Planalto. O presidente chamou o agente repressor de “herói nacional”, enquanto recebia Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra em 8 de agosto de 2019. Um ano depois, recebeu Sebastião Curió, o Major Curió, à época com 81 anos. Tratava-se do oficial do Exército que comandou a repressão à Guerrilha do Araguaia e que foi denunciado pelo Ministério Público Federal por homicídio e ocultação de cadáveres durante a ditadura. Em 2009, ao jornal O Estado de S. Paulo, Curió afirmou que o Exército executou 41 guerrilheiros no Araguaia.
Bolsonaro e sua cúpula militar acabam de
enfrentar, no entanto, o que os criminosos da ditadura entre 1964 e 1985
jamais tiveram de enfrentar. Num julgamento histórico foram condenados por
tentativa de golpe de Estado, inspirados justamente por aqueles torturadores
aos quais eles mesmos prestaram homenagem ao longo dos anos.
O Brasil, ao usar o Estado de Direito para
dar uma resposta a uma tentativa de ruptura democrática, marcou uma página de
sua história. Uma ruptura a uma tradição de anistias, supostamente construídas
para promover uma falsa pacificação. Mas que apenas perpetuaram a impunidade.
Naquela sala do STF realizava-se uma
reparação, ainda que parcial, a todos aqueles que jamais tiveram a chance de
ser atendidos pela Justiça. Aqueles que, pelas atitudes de Bolsonaro,
foram uma vez mais torturados e humilhados.
Ainda que insuficiente, assistimos a um
tributo indireto às vítimas do torturador Ustra. Um resgate da dignidade de
Gilberto Natalini e Adriano Diogo, Luiz José da Cunha, Antônio Carlos Bicalho,
Marcos Nonato da Fonseca, Anamaria Nacionovic, Carlos Nicolau Danielli, Luiz
Vergati, Roberto Martin, Carlos Vitor Alves Delamonica, Crimeia de Almeida,
Luiz Eduardo Merlino, Toshitami Fujimori, Joaquim Alencar Seixas e Ivan Seixas.
Uma resposta simbólica a Amelinha Teles,
torturada diante de seus filhos de 4 e 5 anos. Uma deferência a Alexandre
Vannucchi Leme, morto no DOI–Codi, em 1973, sob o comando de Ustra.
Ao usar o direito, as instituições da
democracia e a Constituição, o Brasil ainda desenha os contornos de uma
reparação às vítimas de Curió, entre eles os guerrilheiros e camponeses do
Araguaia João Carlos Haas, Lourival Paulino, os filhos de Laura Petit da Silva
– Lúcio, Jaime e Maria.
Em Brasília, o fim da ideia de impunidade é
ainda um sinal de que, 50 anos depois da morte de Vladimir Herzog pela
ditadura, não estamos dispostos a rifar a nossa liberdade.
Sozinhas, reparações não são respostas. Acima
de tudo, os autores dos crimes precisam ser levados à Justiça, suas histórias
precisam ser ensinadas e a verdade deve nortear a atitude da sociedade e das
instituições. Não se trata de uma obsessão pelo passado. Mas a construção de
nosso futuro comum.
Num recente informe, a relatoria da ONU para
Verdade, Memória e Justiça alertou que, “embora o Brasil tenha feito progressos
significativos para resolver essas questões desde 1985, a implementação
insuficiente de políticas de justiça transicional para lidar com as
consequências da ditadura infelizmente levou a ataques recorrentes à
democracia, aos direitos humanos e ao Estado de Direito”. O informe aponta que
essa situação manteve uma divisão social e obscureceu os fundamentos do direito
internacional e dos direitos humanos. “Enquanto os direitos à verdade, à
justiça, à reparação e à memória não forem garantidos a todas as vítimas da
ditadura, essa divisão poderá persistir e a história poderá repetir-se”,
alertou Bernard Duhaime, relator da ONU.
Para mudar esse rumo, ele defendeu que o
Brasil implemente de forma urgente o pacote de justiça transicional proposto no
relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Ainda assim, de forma simbólica, o julgamento
de Bolsonaro e da cúpula militar é um primeiro passo. Pedagógico, o processo
serve para revelar com detalhes como funcionam os mecanismos de assassinato de
uma democracia.
O julgamento fortalece a democracia como
nosso instrumento para a justiça social, consolida o Estado de Direito como
arma para um pacto social e é a confirmação da Constituição, não da força, como
trampolim para um futuro.
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital,
em 17 de setembro de 2025.
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