CartaCapital
O Congresso não pode outorgar a si próprio a
condição de guardião máximo da Carta Magna
O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento das denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pelos, dentre outros, crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Por essas razões, intensificaram-se as discussões relacionadas à concessão de anistia no Congresso. Ou seja, pretende-se atribuir ao Legislativo a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de intérprete final e guardião.
Se, de um lado, a realização do Estado
constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do
legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão
entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia
deve ocorrer.
Rememoremos que a reação do Tribunal do
Estado à decretação do Estado de Emergência na Prússia pelo presidente do
Reich, em resposta ao “domingo sangrento” de 1932, abriu caminho para a
nomeação de Adolf Hitler como chanceler do Reich e, mais adiante, para a
ascensão plena do nazismo. Questionada a competência do presidente do Reich, o
Tribunal do Estado sucumbiu-se ao reconhecimento dos poderes do chefe do
Executivo (caso “Preussen versus Reich”) no que veio a ser conhecido como o
“Preussenschlag de 1932”. A decisão foi no sentido de que o ato político
praticado pelo chefe do Executivo era insindicável pelo Judiciário. Algum tempo
depois, Hitler valeu-se do mesmo dispositivo constitucional para, após o
incêndio do Reichstag, em 1933, implantar o totalitarismo. Não é preciso
explicitar os conhecidos desdobramentos que se seguiram, os quais marcaram, com
tintas de sangue, a história da civilização contemporânea.
Ao Judiciário cabe, nas democracias
contemporâneas, a interpretação última da ordem jurídica. Em países como os
latino-americanos, caracterizados por Constituições analíticas, diversas
decisões sobre a vida em comunidade e os comportamentos humanos ocorrem no
âmbito da jurisdição constitucional.
Pela primeira vez na nossa história,
militares, ministros, um ex-presidente da República e outros servidores
públicos da alta administração foram julgados por tentativa de golpe de Estado.
Até então, prevaleceram impunidade, cegueira deliberada e anistia. Sem que
haja margem para tergiversações ou de suposta necessidade de pacificação, a
finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir:
precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira
rechaça ataques violentos à Constituição e à democracia.
Rememoremos que Bolsonaro proliferou
desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso,
o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e
estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não podemos
esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de
impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto
Internacional de Brasília em dezembro de 2022 e do fatídico 8 de Janeiro de
2023, ocasião na qual símbolos dos poderes constituídos da República brasileira
foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.
As provas revelam a gravidade dos crimes
cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração
do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos
golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de
autoridades, que colocaram em risco a própria democracia. Se, antes, a palavra
“golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma
reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada
para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas.
Subvertendo a lógica constitucional, o
Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da
Constituição. Não podemos admitir a tentativa de deslegitimação do Judiciário e
de esvaziamento do seu produto decisório por meio de uma pretendida anistia,
sob pena de esvaziamento do seu compromisso irrenunciável com a democracia e
com o Estado de Direito. Em suas condições e possibilidades, o pacto
constitucional rejeita qualquer pretensão dessa natureza, mesmo que por
iniciativa majoritária. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital,
em 17 de setembro de 2025.
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