O Estado de S. Paulo
O Ministério Público almeja que o STF o autorize a violar, sem rito e sem controle, a garantia constitucional do sigilo
O País tem uma trajetória viva de golpes e de tentativas de golpes. Parece haver sempre uma tentação autoritária rondando a nossa política. No entanto, o autoritarismo está não apenas na política – como se fosse distante do nosso cotidiano. Ele está presente em nossos costumes, em nossa mentalidade, em nossa cultura – também na jurídica. Ele permeia profissões, corporações, instituições – também aquelas benéficas para a sociedade, também aquelas indispensáveis ao regime democrático. Refiro-me aqui, em concreto, ao Ministério Público.
Não basta falar de democracia quando
interessa ao nosso lado, mas sem modificar nosso comportamento quando as normas
democráticas trazem limites, lembram deveres ou estabelecem ritos. Democracia
não é uma fórmula vazia que se preenche com carteirada ou com o grito da última
eleição. É, em primeiro lugar, respeito à Constituição.
É de estarrecer, por exemplo, a manifestação
do Ministério Público Federal (MPF), no RE 1.537.165/SP, negando a garantia
constitucional do sigilo fiscal e financeiro. Sem nenhum rubor, ele postula que
as autoridades persecutórias possam requisitar dados ao Coaf sem autorização
judicial. Não é “apenas” que o Ministério Público venha adotando, em escala
industrial, práticas que ignoram o sigilo fiscal e financeiro, o que, por
óbvio, é um absurdo constitucional. Com todas as letras, o MPF almeja que o
Supremo Tribunal Federal (STF) o autorize a violar, sem rito e sem controle, a
garantia constitucional do sigilo.
No RE 1.537.165/SP, foram reconhecidas duas
questões com repercussão geral. O Ministério Público pode, sem autorização
judicial, requisitar dados sigilosos às autoridades fiscais? O compartilhamento
de dados fiscais pressupõe a instauração de procedimento de investigação penal
formal? Pois bem, o MPF lê a Constituição de 1988 e entende que não precisa de
autorização judicial para requisitar dados sigilosos ao Coaf e que tampouco
necessita haver uma investigação formal para que ele possa acessar tais dados.
Em tal compreensão, destacam-se, entre
outros, dois grandes problemas: (i) desrespeito à Constituição e ao Judiciário;
e (ii) atropelo da legalidade.
Prevista na Constituição, a garantia do
sigilo de dados fiscais e financeiros é uma decisão fundante dos limites do
poder do Estado. Para entrar na esfera da intimidade e da privacidade, o órgão
de persecução criminal precisa da autorização do Judiciário. É antirrepublicano
e antidemocrático – autoritário e inconstitucional – tratar a necessidade de
intermediação da Justiça como obstáculo para a efetividade do trabalho
persecutório.
Segundo. O trabalho de inteligência do Coaf
nasce dos dados. O chamado Relatório de Inteligência Financeira (RIF)
espontâneo é constitucional precisamente porque é produzido e enviado de acordo
com uma normativa impessoal previamente estabelecida. Ele não nasce de uma
vontade persecutória. A lei determina que haverá comunicação do Coaf às
autoridades quando o órgão concluir pela existência de crimes ou de fundados
indícios de sua prática, e não quando as autoridades de persecução criminal
requisitarem – o que é completamente diferente. Se o sigilo fica à mercê de
quem investiga, não existe sigilo.
Uma advertência. Este texto não é um ataque
ao MPF ou a seus membros, numa tentativa negacionista de ignorar sua diária,
efetiva e fundamental contribuição ao Estado Democrático de Direito. Temos,
enquanto sociedade, muito a agradecer ao Ministério Público. O ponto é outro.
Onde há cultura autoritária – e, no Brasil, há cultura autoritária –, é quase
automático transigir com limites, deveres e ritos. Em vez de compromisso com a
democracia, a observância da legalidade é vista como empecilho burocrático –
como é evidente na manifestação do MPF no RE 1.537.165/SP.
Daí decorre uma consequência prática. Por
mais equivocada e absurda que seja, não devemos ficar surpresos com a posição
do MPF sobre a garantia do sigilo. O fato de a Constituição atribuir ao
Ministério Público a missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático
não faz com que ele seja sempre equilibrado ou que tenha sempre a posição mais
ponderada. Sua contribuição ao Direito não advém de uma suposta infalibilidade
– da qual não dispõe –, mas de sua participação no contraditório.
Ver o Ministério Público como fiscal
(perfeito) da lei é uma ingenuidade, contrária às evidências e fonte de sérios
desequilíbrios institucionais. Seus membros são pessoas normais, com as
limitações, enviesamentos, rigidezes e preconceitos inerentes à condição
humana. O Judiciário não deve e não pode tratá-los como infalíveis.
O MPF talvez não tenha se dado conta, mas, ao
defender a prescindibilidade do Judiciário na requisição de dados sigilosos,
escancarou a razão de fundo para a Constituição não lhe conceder acesso direto
a tais dados. A atividade estatal persecutória não tem nada de isenta,
obnubilando até mesmo a compreensão das garantias mais básicas. A democracia
também é feita dizendo não – com fundamento, mas sem medo – ao Ministério
Público.
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