O Estado de S. Paulo
A democracia brasileira precisa de uma direita liberal inequivocamente democrática
Há quem alimente a expectativa de que,
condenado Bolsonaro, a direita democrática ressurja com autonomia em relação ao
ex-presidente. Tomara, mas os fatos até aqui não apontam nessa direção.
Razões para marcar com clareza a diferença com o bolsonarismo jamais faltaram. Faltou, sim, coragem. Nem sempre foi assim. No passado, liberaisconservadores assumiram riscos que a prudência convencional não recomendava. Em 1968, Djalma Marinho, deputado federal pela Arena, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, se recusou a colocar em votação a autorização para que Márcio Moreira Alves, deputado federal do MDB, fosse cassado pelos militares. Marinho – não o neto, hoje líder da oposição no Senado, mas o avô – arriscou seu futuro político. Não evitou a decretação do AI-5, mas ganhou a autoridade moral que distingue as grandes figuras públicas.
Nenhum dos quatro governadores de direita que
postulam a condição de substituto de Bolsonaro parece ser feito desse material.
São políticos adaptativos, que se movem por cálculos eleitorais de curto prazo.
Nada de surpreendente, no panorama geral da política brasileira. Mesmo o
governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que tem estofo e trajetória suficientes
para se colocar um degrau acima, prefere adotar pose não “beliscosa”,
neologismo recém-criado por seu insuperável colega Romeu Zema, governador de
Minas Gerais. A rigor, a questão não é ser ou não belicoso, mas, sim,
minimamente congruente: quem se diz democrata não pode prometer indulto a quem
tramou para subverter a democracia.
O conservadorismo liberal hoje no Brasil
opera segundo uma premissa falaciosa: Lula seria pior que Bolsonaro, no máximo
igual a ele, o que serve de justificativa para a proximidade com o
ex-presidente com vistas a derrotar o atual. Quem se diz democrata não pode
sustentar essa premissa. Nunca fui petista ou lulista, mas os fatos desmontam a
falácia: Lula sempre se submeteu ao resultado nas várias eleições que perdeu
(uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República);
jamais buscou fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder;
respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente
para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva; nunca
instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele.
Sei que o argumento para não romper com
Bolsonaro é racional. Faz sentido não brigar com um líder que comanda um
partido digital de alto teor destrutivo e forte influência sobre o voto de pelo
menos 20% do eleitorado. A mesma racionalidade, porém, leva à conclusão de que
o custo da servidão ao bolsonarismo é crescente. Financiado pelo pai e
estimulado por acólitos da extrema direita, Eduardo Bolsonaro prestou um favor
a Lula. Ao que tudo indica, seu exílio voluntário nos Estados Unidos entrará
para os anais como um dos maiores erros políticos da história brasileira dos
últimos 40 anos.
O filho 03 do ex-presidente parece disposto a
levar sua aventura às últimas consequências. Continua a instigar a escalada do
ataque estadunidense à soberania nacional para alcançar um de dois objetivos:
uma anistia, arrancada a fórceps, que permita ao pai concorrer à Presidência em
2026, hipótese improvável, que significaria fazer vistas grossas à trama
golpista capitaneada por Bolsonaro, concedendo ampla, geral e irrestrita
impunidade a ele e seus liderados; ou uma intervenção estrangeira no processo
eleitoral para distorcê-lo ou deslegitimá-lo. Tanto um como outro objetivo
representam a continuação da tentativa de golpe de Estado frustrada
anteriormente.
Desgastada pela associação com o regime
autoritário, a direita no Brasil levou mais de 30 anos para ser competitiva nas
eleições presidenciais pelo voto direto. Entre 1985 e 2018, salvo pela eleição
e breve presidência de Collor, ela foi ator coadjuvante nas disputas pelo
Palácio do Planalto.
Em 2019, chegou à Presidência em democracia,
sob o comando de um mau ex-militar, notório agitador de quartéis, e parlamentar
do baixo clero, inexpressivo em tudo, exceto pela linguagem chula e agressiva
na defesa da ditadura e de torturadores.
Bolsonaro deu à direita o que até então lhe
faltara: votos numa eleição que é essencialmente plebiscitária. Mas submeteu-a
a uma chantagem. Por pensar e agir exclusivamente como chefe absoluto de um clã
familiar que não leva em consideração a não ser os seus próprios interesses,
ameaça castigar quem não se submeta aos seus desejos e desígnios. Sabendo-se
irremediavelmente condenado pelos crimes que cometeu, só lhe interessa agora
salvar a si mesmo, não importa o preço para o País nem para o futuro da direita
no pós-Bolsonaro.
A democracia brasileira precisa de uma
direita liberal inequivocamente democrática. Ela vive agora um momento
decisivo, que a marcará pelo futuro previsível. Terá a coragem necessária para
romper com o bolsonarismo e se erguer à altura dessa oportunidade histórica?
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