sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Tiro no pé. Por José Sarney*

Correio Braziliense

Hoje a América sabe apenas que a postura de Trump, de uma forma ou de outra, abalou a ordem, atemorizou a população e causou instabilidade

Ao longo da minha vida, tive oportunidade de falar sobre o nosso orgulho de pertencer ao grande continente onde foram desenvolvidas e adaptadas — na América, nos Estados Unidos — as ideias sobre governo e direitos individuais que formaram a moderna democracia, fundamentada na liberdade. 

As Nações Unidas surgiram sob a influência de Roosevelt para substituir a Liga das Nações e enfrentar a Segunda Guerra Mundial. Depois dela, os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma nova ordem mundial consagrando seus valores democráticos, em que eles exerciam sua liderança. Então foram criados a ONU e o seu sistema com o objetivo de assegurar a paz mundial.

O ideário do multilateralismo passou pela criação, em Breton Woods, do sistema monetário internacional, com o FMI e o Banco Mundial, destinados a assegurar a estabilidade econômica e o desenvolvimento mundial. 

Ao mesmo tempo, a Guerra Fria trouxe o grande confronto com a União Soviética (URSS), que desejava estabelecer uma ordem mundial baseada no marxismo-leninismo. O confronto entre capitalismo e comunismo explodiu em guerras como a das Coreias, a do Vietnã e outros conflitos localizados, especialmente no Oriente Médio, na América Latina. Um caso especial foi o de Cuba, que empolgou a juventude mundial. 

De um e de outro lado da Guerra Fria, por todo o mundo, continuou o gosto dos militares pelo poder com golpes com que estabeleceram ditaduras.

Tudo isso me levou a pensar no que teria sido do mundo com as ditaduras de Hitler e Mussolini com suas ideias radicais — exemplo maior foi a "limpeza étnica" que levou ao Holocausto. 

É uma lembrança inevitável quando Trump ataca as fundações da democracia americana, atacando a constituição e os Estados, ferindo os direitos individuais mais básicos — e resolve sacudir o mundo com ameaças capazes de destruir a ordem mundial de que eram os líderes, causando estarrecimento geral e grande desestabilização. 

A pergunta é: que tipo de regímen vai surgir com a renúncia americana de coordenar a ordem mundial? Reagindo à explosão tarifária imposta pelo presidente Trump, na reunião da cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai (SCO), realizada em Tianjin, o líder chinês Xi Jinping propôs a iniciativa de uma nova governança global, promovendo um sistema mais justo e reacional.

Essa Organização, liderada pela China, propõe essa nova ordem baseada na soberania dos países, no respeito à Carta das Nações Unidas, na adoção do multilateralismo como uma força de estabilização para esse mundo turbulento. Também pregaram Xi Jinping e a SCO a cooperação em setores como energia e inteligência artificial.

Claramente, a reunião de Xangai, sem explicitamente dizer isso, propõe a substituição da liderança dos EUA pela da China, o que significa atingir o que Trump pregou, o "America First". O abalo mundial causado pela América ao abdicar da pregação dos seus ideais democráticos e ameaçar países aliados com as tarifas que estabeleceu provoca inevitavelmente a reação de antigos aliados, como União Europeia, México, Canadá, Brasil, Colômbia, Índia e tantos outros países.

A consequência óbvia é a união desses países para se defenderem com tentativas de estabelecer nova ordem fora da influência dos Estados Unidos. No nosso caso, não podemos deixar de pensar no fortalecimento do Brics, latente na reunião de Xangai.

Os líderes dos países fundadores daquela Nova (agora Velha) Ordem Econômica Mundial devem estar tremendo em seus túmulos, vendo que aquilo que os Estados Unidos levantaram como ideais agora está abalado em seu próprio solo diante desse outsider da política, cujos rumos, como o tiroteio tarifário, não se sabe qual direção tomarão. 

Neste momento, o que se vê é um clima de instabilidade, perplexidade e indecisão, que todo mundo enxerga como um desastre interno, uma mudança de governança global e a instabilidade mundial.

Desorientada pelo que o presidente Trump faz do país com sua política, que contraria as promessas feitas, hoje a América sabe apenas que sua postura, de uma forma ou de outra, abalou a ordem, atemorizou a população e causou instabilidade. Pode-se dizer que ele deu um "tiro no pé".

*JOSÉ SARNEY — ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras

 

Nenhum comentário: