Correio Braziliense
Hoje a América sabe apenas que a postura de
Trump, de uma forma ou de outra, abalou a ordem, atemorizou a população e
causou instabilidade
Ao longo da minha vida, tive oportunidade de
falar sobre o nosso orgulho de pertencer ao grande continente onde foram
desenvolvidas e adaptadas — na América, nos Estados Unidos — as ideias sobre
governo e direitos individuais que formaram a moderna democracia, fundamentada
na liberdade.
As Nações Unidas surgiram sob a influência de Roosevelt para substituir a Liga das Nações e enfrentar a Segunda Guerra Mundial. Depois dela, os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma nova ordem mundial consagrando seus valores democráticos, em que eles exerciam sua liderança. Então foram criados a ONU e o seu sistema com o objetivo de assegurar a paz mundial.
O ideário do multilateralismo passou pela
criação, em Breton Woods, do sistema monetário internacional, com o FMI e o
Banco Mundial, destinados a assegurar a estabilidade econômica e o
desenvolvimento mundial.
Ao mesmo tempo, a Guerra Fria trouxe o grande
confronto com a União Soviética (URSS), que desejava estabelecer uma ordem
mundial baseada no marxismo-leninismo. O confronto entre capitalismo e comunismo
explodiu em guerras como a das Coreias, a do Vietnã e outros conflitos
localizados, especialmente no Oriente Médio, na América Latina. Um caso
especial foi o de Cuba, que empolgou a juventude mundial.
De um e de outro lado da Guerra Fria, por
todo o mundo, continuou o gosto dos militares pelo poder com golpes com que
estabeleceram ditaduras.
Tudo isso me levou a pensar no que teria sido
do mundo com as ditaduras de Hitler e Mussolini com suas ideias radicais —
exemplo maior foi a "limpeza étnica" que levou ao Holocausto.
É uma lembrança inevitável quando Trump ataca
as fundações da democracia americana, atacando a constituição e os Estados,
ferindo os direitos individuais mais básicos — e resolve sacudir o mundo com
ameaças capazes de destruir a ordem mundial de que eram os líderes, causando
estarrecimento geral e grande desestabilização.
A pergunta é: que tipo de regímen vai surgir
com a renúncia americana de coordenar a ordem mundial? Reagindo à explosão
tarifária imposta pelo presidente Trump, na reunião da cúpula da Organização
para a Cooperação de Xangai (SCO), realizada em Tianjin, o líder chinês Xi
Jinping propôs a iniciativa de uma nova governança global, promovendo um
sistema mais justo e reacional.
Essa Organização, liderada pela China, propõe
essa nova ordem baseada na soberania dos países, no respeito à Carta das Nações
Unidas, na adoção do multilateralismo como uma força de estabilização para esse
mundo turbulento. Também pregaram Xi Jinping e a SCO a cooperação em setores
como energia e inteligência artificial.
Claramente, a reunião de Xangai, sem
explicitamente dizer isso, propõe a substituição da liderança dos EUA pela da
China, o que significa atingir o que Trump pregou, o "America First".
O abalo mundial causado pela América ao abdicar da pregação dos seus ideais
democráticos e ameaçar países aliados com as tarifas que estabeleceu provoca
inevitavelmente a reação de antigos aliados, como União Europeia, México,
Canadá, Brasil, Colômbia, Índia e tantos outros países.
A consequência óbvia é a união desses países
para se defenderem com tentativas de estabelecer nova ordem fora da influência
dos Estados Unidos. No nosso caso, não podemos deixar de pensar no
fortalecimento do Brics, latente na reunião de Xangai.
Os líderes dos países fundadores daquela Nova
(agora Velha) Ordem Econômica Mundial devem estar tremendo em seus túmulos,
vendo que aquilo que os Estados Unidos levantaram como ideais agora está
abalado em seu próprio solo diante desse outsider da política, cujos rumos,
como o tiroteio tarifário, não se sabe qual direção tomarão.
Neste momento, o que se vê é um clima de
instabilidade, perplexidade e indecisão, que todo mundo enxerga como um
desastre interno, uma mudança de governança global e a instabilidade mundial.
Desorientada pelo que o presidente Trump faz
do país com sua política, que contraria as promessas feitas, hoje a América
sabe apenas que sua postura, de uma forma ou de outra, abalou a ordem,
atemorizou a população e causou instabilidade. Pode-se dizer que ele deu um
"tiro no pé".
*JOSÉ SARNEY — ex-presidente da República, escritor e imortal
da Academia Brasileira de Letras
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