sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Famílias tortas. Por Pablo Ortellado

O Globo

O descompasso entre vida e ideal de políticos não é percebido por seus eleitores como hipocrisia

Uma piada política muito conhecida no Brasil diz o seguinte: “Bolsonaro defende tanto a família tradicional que já teve três.” Essa piada tem uma variante semelhante nos Estados Unidos: “Trump is a big proponent of traditional values. Just ask any of his three families.” (Trump é um grande defensor dos valores tradicionais. Basta perguntar a qualquer uma de suas três famílias.)

A graça das piadas consiste em desmascarar a hipocrisia atribuída aos conservadores, ao defender um modelo rígido de família tradicional enquanto levam vidas muito aquém dos ideais. Mas será que os conservadores são hipócritas? Em 2015, Trump foi entrevistado na CNN por Jake Tapper. Depois de dizer que era a favor do “casamento tradicional” (em referência ao casamento gay), o jornalista rapidamente o contestou:

— O que há de tradicional em ser casado três vezes?

Trump respondeu com certo constrangimento, o que não se vê nele com frequência:

— Você tem um bom argumento. Tenho sido uma pessoa que trabalha demais. Tenho um bom casamento e uma grande esposa agora. Minhas duas primeiras também eram boas, mas eu trabalhava demais, talvez 22 horas por dia. Eu me culpo. Meus negócios eram importantes demais para mim. Não sei se isso é bom ou ruim.

A resposta de Trump dá a pista para entender por que o descompasso entre vida e ideal não é percebido por seus eleitores como hipocrisia, mas como humanidade. A quem quiser entender isso melhor, recomendo assistir à série “Landman” no streaming Paramount+. Ela é dirigida por Taylor Sheridan, que vem se especializando em retratar a vida e a visão de mundo dos conservadores e também é responsável pela série “Yellowstone”, a mais vista nos Estados Unidos em 2021-2022.

“Landman” retrata a vida de Tommy Morris, gestor de crises de uma empresa independente de extração de petróleo no interior do Texas. Enquanto lida com traficantes mexicanos que atuam na região e discursa sobre a persistente necessidade da indústria do petróleo, acompanhamos suas tumultuadas relações familiares. Morris é alcoólatra, endividado e divorciado. Seus dois filhos não parecem muito bem. O mais velho, Cooper, abandonou a faculdade e pediu para trabalhar como peão. A mais nova, Ainsley, é uma adolescente fútil que só se importa em conseguir seduzir um jogador que vá para a NFL. Sua ex-mulher, Angela, casou-se de novo, mas vive tentando seduzi-lo. No meio da primeira temporada, eles finalmente decidem retomar o casamento.

Na família reconstruída, vemos o desenrolar da personagem Angela, mulher fútil que, como a filha Ainsley, parece apenas se importar com a aparência. A futilidade dos personagens de mãe e filha é tamanha que a crítica acusou Sheridan de “odiar as mulheres” e de dispensar um olhar objetificador masculino sobre as duas personagens. Mas, à medida que a série caminha para o final, Angela vai se mostrando altruísta, ajudando, a seu modo, um asilo de idosos. Ela se mostra preocupada com a segurança do marido e dos filhos. Desdobra-se para criar uma rotina centrada no convívio familiar.

Morris é bruto e obcecado pelo trabalho. Angela é materialista e narcisista. Mas também amam a família e tentam ser religiosos. São bastante humanos, como Trump.

Os progressistas têm muita dificuldade em entender os conservadores. Acham que sua ênfase na família e nos valores tradicionais significa que deveriam ser carolas, com famílias exemplares — do contrário, seriam hipócritas. Não conseguem entender a diferença entre a dimensão prática e a dimensão normativa — os valores a que almejamos são uma coisa; a vida vivida é sempre mais complicada e desafiadora.

As “famílias tortas” não desmentem a importância dos valores tradicionais. A ênfase dos progressistas em denunciar a hipocrisia os impede de entender o apelo da família para um segmento conservador crescentemente majoritário. Como nos lembra Christopher Lasch, mesmo imperfeita, a família é um refúgio de afeto e segurança em meio a um mundo sem coração.

 

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