O Globo
O descompasso entre vida e ideal de políticos
não é percebido por seus eleitores como hipocrisia
Uma piada política muito conhecida no Brasil
diz o seguinte: “Bolsonaro defende tanto a família tradicional que já teve
três.” Essa piada tem uma variante semelhante nos Estados Unidos: “Trump is a big proponent of traditional values.
Just ask any of his three families.” (Trump é um grande defensor
dos valores tradicionais. Basta perguntar a qualquer uma de suas três
famílias.)
A graça das piadas consiste em desmascarar a hipocrisia atribuída aos conservadores, ao defender um modelo rígido de família tradicional enquanto levam vidas muito aquém dos ideais. Mas será que os conservadores são hipócritas? Em 2015, Trump foi entrevistado na CNN por Jake Tapper. Depois de dizer que era a favor do “casamento tradicional” (em referência ao casamento gay), o jornalista rapidamente o contestou:
— O que há de tradicional em ser casado três
vezes?
Trump respondeu com certo constrangimento, o
que não se vê nele com frequência:
— Você tem um bom argumento. Tenho sido uma
pessoa que trabalha demais. Tenho um bom casamento e uma grande esposa agora.
Minhas duas primeiras também eram boas, mas eu trabalhava demais, talvez 22
horas por dia. Eu me culpo. Meus negócios eram importantes demais para mim. Não
sei se isso é bom ou ruim.
A resposta de Trump dá a pista para entender
por que o descompasso entre vida e ideal não é percebido por seus eleitores
como hipocrisia, mas como humanidade. A quem quiser entender isso melhor,
recomendo assistir à série “Landman” no streaming Paramount+. Ela é dirigida
por Taylor Sheridan, que vem se especializando em retratar a vida e a visão de
mundo dos conservadores e também é responsável pela série “Yellowstone”, a mais
vista nos Estados Unidos em 2021-2022.
“Landman” retrata a vida de Tommy Morris,
gestor de crises de uma empresa independente de extração de petróleo no
interior do Texas. Enquanto lida com traficantes mexicanos que atuam na região
e discursa sobre a persistente necessidade da indústria do petróleo,
acompanhamos suas tumultuadas relações familiares. Morris é alcoólatra,
endividado e divorciado. Seus dois filhos não parecem muito bem. O mais velho,
Cooper, abandonou a faculdade e pediu para trabalhar como peão. A mais nova,
Ainsley, é uma adolescente fútil que só se importa em conseguir seduzir um
jogador que vá para a NFL. Sua ex-mulher, Angela, casou-se de novo, mas vive
tentando seduzi-lo. No meio da primeira temporada, eles finalmente decidem
retomar o casamento.
Na família reconstruída, vemos o desenrolar
da personagem Angela, mulher fútil que, como a filha Ainsley, parece apenas se
importar com a aparência. A futilidade dos personagens de mãe e filha é tamanha
que a crítica acusou Sheridan de “odiar as mulheres” e de dispensar um olhar
objetificador masculino sobre as duas personagens. Mas, à medida que a série
caminha para o final, Angela vai se mostrando altruísta, ajudando, a seu modo,
um asilo de idosos. Ela se mostra preocupada com a segurança do marido e dos
filhos. Desdobra-se para criar uma rotina centrada no convívio familiar.
Morris é bruto e obcecado pelo trabalho.
Angela é materialista e narcisista. Mas também amam a família e tentam ser
religiosos. São bastante humanos, como Trump.
Os progressistas têm muita dificuldade em
entender os conservadores. Acham que sua ênfase na família e nos valores
tradicionais significa que deveriam ser carolas, com famílias exemplares — do
contrário, seriam hipócritas. Não conseguem entender a diferença entre a
dimensão prática e a dimensão normativa — os valores a que almejamos são uma
coisa; a vida vivida é sempre mais complicada e desafiadora.
As “famílias tortas” não desmentem a
importância dos valores tradicionais. A ênfase dos progressistas em denunciar a
hipocrisia os impede de entender o apelo da família para um segmento
conservador crescentemente majoritário. Como nos lembra Christopher Lasch, mesmo
imperfeita, a família é um refúgio de afeto e segurança em meio a um mundo sem
coração.
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