O Estado de S. Paulo
Logo após proclamada a Constituição de 1891, um pequeno grupo de intelectuais vagamente devotado ao fascismo ascendente na Europa moveu-lhe virulento combate
Não se requer muita argúcia para perceber
que ideias e filosofias produzidas num passado distante podem exercer forte
influência sobre os esforços de um país para realizar seus ideais de
crescimento econômico e bem-estar.
As linhas acima têm como objetivo lembrar
os estragos que o Brasil sofreu por não se ter dedicado seriamente à análise
desse problema. Logo após a proclamação da Constituição republicana de 1891, um
pequeno grupo de intelectuais vagamente devotado ao fascismo ascendente na
Europa moveu-lhe virulento combate, fornecendo combustível ao getulismo, em
seguida à ditadura do Estado Novo e, depois, ao desastre maior, o modelo
nacional-estatista de crescimento econômico.
Salvo Rui Barbosa, liberal convicto, e Sérgio Buarque de Holanda, liberal um tanto cético, alguns nomes são facilmente citáveis. O que mais influenciou aqueles tempos de ululante mediocridade foi, sem dúvida, Oliveira Viana, que combinava um alto cargo no governo com uma indisfarçada simpatia pelo Integralismo de Plínio Salgado.
Seus livros permearam amplamente a educação
universitária, em geral, e a jurídica, em particular. Afirmo, sem medo de
errar, que no máximo dois em cada dez de seus leitores passaram ao segundo
volume. Os outros oito deliciavam-se com o escárnio que ele despejava sobre
Rui, mas não foram aos capítulos finais, nos quais ele exclama em alto e bom
som: “Pois então assim seja: rendamo-nos a Rui”. Eis o que ele diz na página
162 da Edição Edusp-Itatiaia: “Certos filósofos alemães modernos sustentam que
‘voltar a Hegel é progredir’. Podemos dizer, parafraseando-os, que – em matéria
de funções e garantias do Poder Judiciário – voltar à doutrinação e à pureza do
espírito da Constituição de 1891 é progredir, porque é salvar os destinos das
liberdades do nosso povo-massa e, portanto, da verdadeira democracia no
Brasil”. Em 1987, a Editora da USP reeditou sua obra máxima, Instituições
Políticas Brasileiras. Não resisto a perguntar para quê. Se a reedição era um
imperativo, a editora poderia ao menos ter suprimido o trecho (volume 1,
páginas 154-5) no qual Oliveira Viana, mais de 50 anos antes, descrevera a
rebelião de Canudos e de Antônio Conselheiro como um bando de tarados
lombrosianos.
Um exemplo ainda mais ilustrativo é o de
Alberto Torres (O Problema Nacional Brasileiro, 1933), homem culto, ministro do
Supremo Tribunal Federal e governador do Rio de Janeiro, sempre louvado como o
fundador do nacionalismo brasileiro, mas que nunca se afastou do positivismo de
Augusto Comte. Sua falha, segundo os comentaristas dos anos 50, seria não se
ter alçado à altura do modelo nacionalista de crescimento econômico baseado na
empresa estatal e na tecnocracia.
Notável, no caso de Alberto Torres, é o
fato de, na juventude, ele ter se dedicado de corpo e alma ao abolicionismo e à
República. Eis aonde o levou, à decepção com a República.
Assim como a República, tampouco a abolição
correspondeu àquela com que havia sonhado. Mas com que abolição havia sonhado?
Justiça abstrata, redenção humanitária, sem prejuízo ou perturbação para a
organização das atividades produtivas? Ouçamo-lo: “A escravidão foi uma das
poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu; nas aéreas
instituições políticas que temos tido, as boas intenções do segundo monarca, a
honestidade e o saber de seus ministros não conseguiram fazer descer para o
nível dos fatos a nuvem luminosa das doutrinas adotadas. Social e
economicamente, a escravidão deunos, por longos anos, todo o esforço e toda a
ordem que então possuíamos, e fundou toda a produção material que ainda temos”.
Por aí se vê que sua saudosista referência
aos “bálsamos do amor” entre senhor e escravo corresponde ao sentido profundo
de sua visão sobre o escravismo no Brasil, ao paternalismo como experiência
vivida. Este reaparece na continuação do parágrafo acima citado: “A moral dos
costumes (da escravidão) foi superior à das relações desapiedadamente cruas dos
anglo-saxônicos com os pretos e indígenas, nos Estados Unidos” (...).
Decadência cultural, desorganização das atividades produtivas, desordens
políticas.
Mas o remate de sua visão conservadora se
manifesta de uma forma ainda mais contundente em sua percepção da migração para
as cidades, do crescimento destas, da multidão que se mudava para as cidades em
busca de meios de sobrevivência. Para Torres, esse movimento refletia uma
dissolução moral (em O Problema Nacional Brasileiro, páginas 72-75). Ele via
como corrupção dos costumes da roça o contato com os da cidade: “As praias, os
portos, as fronteiras, as cidades à beira-mar e cosmopolitas, os povoados à
margem das grandes vias de comunicação, pousos de marujos, de aventureiros, e
de viajantes em jornadas de ambição, e em férias, pelo menos de disciplina
social, são, em toda a parte, zonas mistas de difusão e desagregação social,
áreas de invasão de costumes fáceis e de perversão dos caracteres. O Pireu
infectou Atenas”. •
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Um comentário:
As pessoas escreviam o que pensavam sem medo,rs.
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