O Estado de S. Paulo
A advocacia reconhece os percalços dos juízes. Mas nenhuma justificativa pode cercear prerrogativas dos impetrantes e os direitos dos jurisdicionados
Originado no Direito Romano, o habeas
corpus constitui o instrumento de maior efetividade para a garantia da
liberdade e dos demais direitos individuais. A agilidade de sua tramitação
conduz a uma resposta mais célere do Poder Judiciário a uma coação ilegal que
vitimiza um cidadão.
O termo habeas corpus, etimologicamente,
significa “toma o corpo”. Ela tem, pois, o sentido de uma obrigação para o
autor de uma prisão exibir em juízo o preso para que a prisão seja ou não
mantida pelo juiz.
As suas origens encontram-se em Roma, mas o seu arcabouço jurídico lhe foi dado na Inglaterra, especificamente a partir da Carta Magna outorgada pelo rei João Sem Terra, em 1215.
Em nosso país, a Constituição de 1824 não
fez nenhuma menção explícita ao instituto, mas consignou que ninguém poderia
ser preso sem culpa formada e ordem da “autoridade legítima”, e o preso deveria
ser apresentado ao juiz (artigo 179, parágrafo 8.º, incisos VIII e X).
Extrai-se dessa redação a admissão implícita do habeas corpus. O Código de
Processo Criminal de 1832 e leis posteriores passaram a prevê-lo com a sua
denominação.
No Brasil foi elaborada a chamada doutrina
brasileira do habeas corpus, segundo a qual qualquer conduta ilegal que
violasse um direito poderia ser atacada pelo habeas corpus.
Rui Barbosa já assinalava a sua pertinência
quando houvesse violência ou coação ilegal e mesmo ameaça em razão de excesso
de autoridade ou conduta arbitrária. Vê-se que ele tinha o escopo de barrar
atentados a direitos de naturezas diversas que estivessem sendo impedidos de
ser exercidos pelo abuso de poder ou por ilegalidade. Esse ensinamento de Rui
foi incorporado na consciência jurídica da Nação, como instrumento para coibir
os excessos gerados pelo arbítrio e pelos abusos de autoridades. Como expressão
de sua importância, ele passou a ser cognominado de “remédio heroico”.
Em determinada quadra de nossa história
houve uma sensível redução da abrangência do habeas corpus, até que, com o
golpe militar, ele sofreu importante restrição, com a Emenda Constitucional n.º
5, de 1969. Na década de 70, ao lado do mandado de segurança, o habeas corpus
voltou a constituir o esteio de garantia das liberdades individuais.
Atualmente, no entanto, está havendo uma
grave mitigação na eficácia do habeas corpus em face do tratamento que a ele
está sendo dispensado pelo Judiciário.
Em primeiro lugar, o princípio do
colegiado, uma das características essenciais dos julgamentos proferidos pelos
tribunais, está sendo violado. Uma vez provocados pelos instrumentos próprios,
os desembargadores e os ministros deveriam reexaminar sempre em conjunto as
decisões individuais das instâncias inferiores. Os julgamentos coletivos
constituem uma das razões da existência dos tribunais.
No entanto, essa regra vem sendo
desrespeitada com frequência. Não se pense que o habeas corpus está sendo
poupado – não, ao contrário, um surpreendente número de impetrações recebe
soluções individuais dos respectivos magistrados relatores. Decidem sem nem
sequer dar vista ao Ministério Público. O advogado impetrante, por sua vez,
fica impedido de produzir sustentação oral. Muitas e muitas vezes, não tem
oportunidade de sequer entregar memoriais, pois a decisão é proferida logo após
a distribuição, no mesmo ou em um dos dias seguintes. Quando isso não ocorre,
nem sempre se consegue uma entrevista, nem mesmo por videoconferência, antes da
decisão monocrática.
Os advogados têm plena noção do acúmulo de
processos que assoberbam todos os tribunais pátrios. Sabe-se também que, por
tal razão, o número de sustentações orais por sessão de julgamento é excessivo,
superior ao que seria razoável para um julgador não padecer de exaustão e de
fadiga no final do dia.
Sabe-se, ainda, que a necessidade, a
qualidade e a eficiência de algumas sustentações ficam muito aquém dos padrões
desejáveis. Por tal razão, está sendo elaborado um projeto de lei para que se
organize a advocacia em carreira, como ocorre na maioria dos países. Um
critério temporal possibilitaria aos advogados, após uma militância de cinco
anos em primeiro grau, trabalhar perante os tribunais localizados nos Estados
e, após outros cinco anos, estariam habilitados a exercer a profissão nos
tribunais superiores de Brasília.
Como se nota, a advocacia reconhece e
compreende os percalços dos magistrados. No entanto, nenhuma justificativa pode
cercear as prerrogativas dos impetrantes e os direitos dos jurisdicionados.
Esforços já estão sendo desenvolvidos entre
advogados da área criminal e alguns magistrados dos tribunais de Brasília para
que soluções sejam encontradas tendo em vista conciliar as suas dificuldades
com o sagrado direito dos jurisdicionados de terem as suas postulações
integralmente examinadas. Para tanto, as decisões deverão ser obrigatoriamente
colegiadas, após a livre manifestação dos advogados nas tribunas, de acordo com
os cânones legais.
*Advogado
Nenhum comentário:
Postar um comentário