sábado, 15 de julho de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo - Piketty revisitado

Carta Capital

Dez anos após seu lançamento, ‘O Capital no Século XXI’ ainda se mostra central para a compreensão da desigualdade

Capital no Século XXI (2013), de Thomas Piketty, foi analisado por autores de diferentes escolas na coletânea de artigos enfeixados em Depois de Piketty. Entre os tantos articulistas figuram Bradford ­Delong, ­Robert Solow, Paul Krugman, Laura ­Tyson, Michel Spence e Branko ­Milanovic. Todas as contribuições cuidam de investigar os processos econômicos, sociais e políticos que articulam as metamorfoses da riqueza ao longo de quatro séculos e seus efeitos distributivos.

Thomas Piketty, sabe-se, palmilha os caminhos das relações entre riqueza e renda desde o século XVIII, quando predominava a riqueza fundiária – cujo declínio foi imposto pelas forças das políticas mercantilistas de incentivo à manufatura – até os arranjos contemporâneos empoderados pelo patrimonialismo financeiro e pela concentração do capital nos grandes oligopólios que dominam todos os setores da indústria e dos serviços na arena global.

Analisando as oito maiores economias desenvolvidas do mundo, Piketty revela que a participação da riqueza agregada subiu de cerca de 200% a 300%, em 1970, para 400% a 600%, atualmente. O formato da curva que expressa a evolução dessa relação é em “U”, com queda acentuada na participação da riqueza agregada sobre a renda no período que compreende as duas Guerras Mundiais e a Grande Depressão. A tendência inverte-se de forma mais acentuada a partir dos anos 70 do século XX.

Em novo livro, um conjunto de autores se debruça sobre as metamorfoses da riqueza no mundo

No pós-Guerra, as políticas econômicas foram forjadas sob o receio de reedição do desastre social e econômico ocorrido na Grande Depressão, almejando estabilizar uma economia com fortes inclinações à instabilidade.

Seria razoável afirmar que nos Trinta Anos Gloriosos estava invertida a equação que Piketty utiliza para caracterizar a dinâmica das economias contemporâneas “financeirizadas”. Piketty apresenta uma relação simples: r>g, onde r é riqueza e g, a renda. No período dito glorioso, a renda, g, crescia mais que a riqueza, r.

Em seu artigo, Paul Krugman dispara seus obuses na direção daqueles que tentam desacreditar qualquer menção à desigualdade. Declarou Robert Lucas Jr. dos píncaros de suas sabedorias racionais: “Das tendências que são prejudiciais à economia sã, a mais sedutora e, na minha opinião, a mais venenosa é focar em questões de distribuição”.

Krugman contesta: “Nos Estados Unidos, a parcela da renda nacional que vai para o 1% mais rico seguiu um grande arco em forma de U. Antes da Primeira Guerra Mundial, 1% recebia cerca de um quinto da renda total na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Em 1950, essa fatia foi reduzida em mais da metade”.

Nos Trinta Anos Gloriosos, o circuito da renda e do emprego desenvolvia-se, então, nos espaços nacionais da economia internacional, impulsionando o adensamento das relações domésticas entre manufatura, serviços e agricultura. A formação da renda e da demanda agregadas decorria da disposição de gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam assalariados. Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar a capacidade produtiva em operação ou ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.

Na era da globalização, a redistribuição espacial da manufatura e o avanço tecnológico engendraram a precarização do emprego e a estagnação dos rendimentos dos trabalhadores, reduzindo assim a capacidade de difusão do gasto das empresas. As famílias submetidas à lenta evolução dos rendimentos sustentaram a expansão do consumo na vertiginosa expansão do crédito, que criou poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda ao mesmo tempo que as aprisionou no ciclo infernal do endividamento.

Os detentores de riqueza financeira apropriaram-se, ademais, do “tempo livre” criado pelo avanço tecnológico, que promove simultaneamente a desqualificação da massa assalariada e a polarização do mercado de trabalho. Os “desqualificados” tornam-se dependentes crônicos do endividamento, sempre ameaçados pelo desemprego e desesperados pela sobrevivência.

Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, sua fragmentação espacial e, ainda, a utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e instituições financeiras.

A centralização do comando no capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva. Enquanto os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de tesouraria, os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para garantir a “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve revelam que, entre 2003 e 2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de emprego e renda no setor produtivo.

A frugalidade dos ricos amplia o papel da herança na reprodução e acumulação da riqueza, o que desmente o caráter meritocrático e “competitivo” do enriquecimento alegado pelos liberais. Ao desdobrar a riqueza nas formas em que se transmutam ao longo dos três séculos de história, Piketty faz reaparecer no proscênio da vida econômica a tendência “natural” do capitalismo à preeminência do capital-propriedade e da valorização de ativos já existentes sobre as aventuras do investimento produtivo.

Como diz ele no capítulo final de Depois de Piketty, em resposta às reflexões presentes nos textos anteriores, quando o empresário se torna um “rentier”, dominante sobre os que possuem apenas o próprio trabalho, “o capital se reproduz mais velozmente que o aumento da produção e o passado devora o futuro”.

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

2 comentários:

Neves disse...

Este é o Luiz Gonzaga Belluzzo professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e Doutor em economia pela Unicamp.
Leiam tudo o que ele escreve. Está demorando a ser Ministro

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e tentando entender.