Folha de S. Paulo
Neste conflito, os depósitos de racismo
antissemita e islamofóbico são um reservatório imenso de símbolos e afetos
Quem estuda o debate
público brasileiro não tem paz. A transformação digital do
ativismo e da deliberação pública no início da década de 2010, juntamente com o
repentino aumento do interesse dos brasileiros na política e na politização de
qualquer assunto, principalmente após as mobilizações de 2013, causaram uma
mudança significativa na forma como os tópicos de interesse público são
discutidos.
Os teóricos da democracia deliberativa
louvariam o aumento dos envolvidos na "troca pública de razões"
depois de décadas de apatia, desinteresse e cinismo da população com relação a
temas políticos.
Contudo, a expressão popular "treta" talvez expresse melhor o que fazemos em público, cara a cara ou em ambientes digitais. Tretamos não para servir ao princípio do melhor argumento, em um processo de esclarecimento recíproco, como sonharia Kant, mas para defender posições já assumidas pelo lado com que nos identificamos e para atacar aquilo que já não gostamos.
Em suma, discute-se para ganhar uma briga
mesmo sem ter razão. Tretar é preciso, argumentar não é preciso.
A treta hoje é sobre o conflito entre Israel e Palestina,
e os ânimos estão tão inflamados que se diria que as próximas eleições
brasileiras serão decididas entre o Hamas e
o Likud.
Nesse campo minado, verdades e mentiras,
revelações e enganações brincam de esconde-esconde entre vídeos
descontextualizados, acusações, entrevistas sérias, propaganda camuflada em
estudos, relatórios e reportagens. Certezas crescem frondosas onde deveria haver
hesitação, simplificações quando se esperaria complexidade, dogmas onde algum
ceticismo seria mais prudente.
Por que diabos isso ocorre?
É verdade que o fato de que Israel tenha sido
adotado como parte do imaginário do bolsonarismo não ajuda a serenar os ânimos,
pois onde há bolsonarismo, há conflito. Isso aconteceu por afinidades
ideológicas, posto que Bolsonaro e
Netanyahu pertencem à alcateia de animais políticos cujo ímpeto autocrático e
necessidade de ter inimigos nem sempre são contidos pelas cercas da democracia
liberal.
Mas também porque, como um legítimo trumpismo
tropical, o bolsonarismo importou toda a simbologia da direita conservadora
americana, inclusive a adesão automática à confusão entre o Israel bíblico e o
moderno Estado de Israel. Some-se a isso as representações dos evangélicos que
adoram se reivindicar herdeiros diretos do "povo de Deus".
A esquerda tradicional, por sua vez,
sintetiza no conflito séculos de ideologia antiamericana, anti-imperialista e,
ultimamente, anticolonial. Nesse imaginário, Israel, com ou sem Netanyahu, é um
braço do imperialismo americano, uma potência colonial e opressora que ergueu
um Estado rico e armado até os dentes sobre o sangue dos palestinos e dos seus
vizinhos árabes e persas.
Estabelecidos os imaginários e as atitudes, o
resto é desavença. A extrema direita e a esquerda brasileira vivem uma
dialética sem síntese. Um é o que o outro nega. Como a esquerda já estava no
terreno quando a nova extrema direita surge, é sobretudo esta que busca,
intuitivamente, criar a própria identidade por contraposição: o bolsonarismo é
a não esquerda, só que radical.
Isso vale para tudo, de vacina a marcas de
chocolate, como vimos na guerrinha infantil do fim de semana, e se estende para
guerras e ataques terroristas. Se não faltou gente de esquerda complacente com
a carnificina do Hamas, tampouco faltou gente da extrema direita para oferecer
condescendência para as draconianas medidas contra a população de Gaza. Não há
treta sem o correspondente "passapanismo" nem para acusar o outro lado
justamente do que mais pratica: indignação seletiva.
Outra razão talvez seja a necessidade, típica
do narcisismo digital, de que todo mundo, o tempo todo, tome posição sobre a
rixa do momento. Posição política, por certo, mas também afetiva e existencial.
Mesmo que não se compreenda com clareza as questões envolvidas na querela nem a
cadeia de consequências que decorrerá do modo ela como for resolvida. Dizer
"não sou capaz de opinar" é comportamento socialmente inaceitável.
Por fim, não se inflama uma discussão sem um
bom combustível. No caso deste conflito, os depósitos de racismo antissemita e
islamofóbico são um reservatório imenso de símbolos e afetos. Com esses
recursos à mão, argumentos para justificar preferências mais uma vez se provam
dispensáveis.
Afinal, se não sabe por que razão se odeia
uns ou outros, não é preciso buscar razões. Basta odiá-los pelo que são.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Sensato, mas muito acima da média das colunas do jornalismo brasileiro, que tentam pelas vias mais tortuosas apoiar os ataques do ESTADO TERRORISTA de Israel aos civis palestinos e apoiam igualmente a cumplicidade criminosa a eles fornecida pelos EUA e pela maior parte dos governos europeus, com destaque para o asqueroso primeiro-ministro alemão.
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