domingo, 27 de julho de 2025

Lembrando Orwell - Luiz Sérgio Henriques*

O Estado de S. Paulo

Com seu ressentimento maciço, o ‘hegemon’ suicida propicia o declínio acelerado do próprio país e, mais do que isso, das liberdades liberais

Artistas são dotados de antenas sensíveis capazes de captar em profundidade o medo e a esperança em cada circunstância. Vendo e vivendo as muitas tensões ao redor, em que três “Estados civilizacionais”, voltados para o futuro ou amarrados ao passado, chocam-se às vezes sem fragor, às vezes com virulência, a memória volta a uma antiutopia clássica da Guerra Fria. Trata-se de George Orwell e seu terrível 1984, anunciador de um futuro totalitário em que imensas unidades políticas, a Oceânia, a Lestásia e a Eurásia, dançariam um balé desesperado de conflitos mútuos e alternados que o indivíduo comum não compreende e que o esmagam sem piedade.

Os slogans recorrentes na Oceânia e nos demais superestados ainda hoje causam calafrios. “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” – eram as terríveis frases então onipresentes e por que não agora também. As sociedades de controle absoluto mais do que nunca escapam do terreno da fantasia e se tornam realidades palpáveis. Deixemos de lado a Eurásia orwelliana, que podemos associar, com uma dose de arbítrio, à Rússia de Putin, agarrada a uma concepção territorial de império e à restauração da grandeza passada de czares e líderes autocratas. E examinemos o Ocidente norte-americano (a Oceânia) e o Oriente chinês (a Lestásia), usando igual dose de arbítrio para associar a topografia de 1984 ao mundo em torno de nós.

Estados Unidos e China – Oceânia e Lestásia – constituem já o eixo bipolar em torno do qual potências médias esforçam-se por se colocarem mais ou menos autonomamente. A China, paradoxalmente, foi a grande estrela da globalização dita neoliberal. Taxas altíssimas de investimento, absorção e criação acelerada de tecnologia e notável disciplina da força de trabalho tornaram-na um dos fenômenos mais impressionantes de desenvolvimento das forças produtivas em toda a história.

Tornada a fábrica do mundo, a partir de certo ponto também tomou a cargo a construção de uma infraestrutura verdadeiramente global de estradas, portos e aeroportos. Um cínico diria que, benefícios gerais à parte, tal rede existe, no fundo, em função do escoamento do acúmulo de mercadorias que um império econômico deste porte inevitavelmente passa a produzir em ritmo crescente.

Mais preocupante ainda é o fato de que, concomitantemente à expansão exponencial da economia, a política de Lestásia se fechou cada vez mais. Seria evidente exagero dizer que voltaram os tempos de culto a Mao Zedong e de leitura obsessiva do seu “livrinho vermelho”, que chegaram a incendiar a imaginação de setores radicalizados do Ocidente democrático. No entanto, com Xi Jinping eliminou-se a limitação de mandatos presidenciais e reconcentrou-se o poder, derrogando-se as medidas “democratizantes” do reformismo pós-Mao. No novo curso chinês, o admirável bem-estar de algumas centenas de milhões de pessoas se paga com obediência política e consenso passivo.

A Oceânia norte-americana é o mais recente – e o mais temível – dos desastres. Não que a (contra)revolução política trumpista tenha sido um raio em céu sereno, até pelo fato de ter tido uma primeira e atenuada versão em 2016. Contudo, é impactante ver em ação a constituição de um bloco nacional-populista capaz de empolgar, sob a liderança de um demagogo, setores díspares da economia e da sociedade. Entre eles, destaquemos os antigos colarinhos azuis, destituídos pela automação e pelo deslocamento das fábricas, e os tecno-oligarcas da digitalização da vida, cujo reino, estabelecido nas nuvens, não é propriamente deste mundo. Humano, demasiadamente humano, o sofrimento dos primeiros; transumana ou pós-humana, a fantasia de onipotência dos segundos.

Na Oceânia, a liberdade sem regras, desconstitucionalizada, é a chave para a manipulação de um número indeterminado de indivíduos. A verdade desaparece nas brumas da pós-verdade, como se a senha para a entrada na massa de seguidores do líder fosse a aceitação de falsidades autoevidentes. É nesse ponto que apareceram as diferentes, sucessivas e tediosas teorias da conspiração, como as do nascimento queniano de Barack Obama, a organização de festins diabólicos numa pizzaria de Washington para as elites democratas e, last but not least, a grande mentira da adulteração dos resultados eleitorais em 2020. Essa última, aliás, iria inspirar, como é do conhecimento geral, a mesma atitude subversiva na passagem de poder entre nós, em 2022.

As ondas de choque que têm se seguido ao aparecimento do “hegemon ressentido” (Yascha Mounk), com tarifas arbitrárias, ameaças de anexação e demais chantagens assustam sobretudo aqueles que, independentemente da supremacia econômica desse ou daquele país, se preocupam com a sobrevivência da modesta, mas persistente, utopia democrática. Com seu ressentimento maciço, o hegemon suicida propicia o declínio acelerado do próprio país e, mais do que isso, das liberdades liberais, sem as quais nós, cidadãos e cidadãs do Ocidente político, teríamos dificuldade de sobreviver mesmo em meio à abundância de mercadorias.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É COEDITOR DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

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