O Estado de S. Paulo
Com seu ressentimento maciço, o ‘hegemon’ suicida propicia o declínio acelerado do próprio país e, mais do que isso, das liberdades liberais
Artistas são dotados de antenas sensíveis
capazes de captar em profundidade o medo e a esperança em cada circunstância.
Vendo e vivendo as muitas tensões ao redor, em que três “Estados
civilizacionais”, voltados para o futuro ou amarrados ao passado, chocam-se às
vezes sem fragor, às vezes com virulência, a memória volta a uma antiutopia
clássica da Guerra Fria. Trata-se de George Orwell e seu terrível 1984,
anunciador de um futuro totalitário em que imensas unidades políticas, a
Oceânia, a Lestásia e a Eurásia, dançariam um balé desesperado de conflitos
mútuos e alternados que o indivíduo comum não compreende e que o esmagam sem
piedade.
Os slogans recorrentes na Oceânia e nos demais superestados ainda hoje causam calafrios. “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” – eram as terríveis frases então onipresentes e por que não agora também. As sociedades de controle absoluto mais do que nunca escapam do terreno da fantasia e se tornam realidades palpáveis. Deixemos de lado a Eurásia orwelliana, que podemos associar, com uma dose de arbítrio, à Rússia de Putin, agarrada a uma concepção territorial de império e à restauração da grandeza passada de czares e líderes autocratas. E examinemos o Ocidente norte-americano (a Oceânia) e o Oriente chinês (a Lestásia), usando igual dose de arbítrio para associar a topografia de 1984 ao mundo em torno de nós.
Estados Unidos e China – Oceânia e Lestásia –
constituem já o eixo bipolar em torno do qual potências médias esforçam-se por
se colocarem mais ou menos autonomamente. A China, paradoxalmente, foi a grande
estrela da globalização dita neoliberal. Taxas altíssimas de investimento,
absorção e criação acelerada de tecnologia e notável disciplina da força de
trabalho tornaram-na um dos fenômenos mais impressionantes de desenvolvimento
das forças produtivas em toda a história.
Tornada a fábrica do mundo, a partir de certo
ponto também tomou a cargo a construção de uma infraestrutura verdadeiramente
global de estradas, portos e aeroportos. Um cínico diria que, benefícios gerais
à parte, tal rede existe, no fundo, em função do escoamento do acúmulo de
mercadorias que um império econômico deste porte inevitavelmente passa a
produzir em ritmo crescente.
Mais preocupante ainda é o fato de que,
concomitantemente à expansão exponencial da economia, a política de Lestásia se
fechou cada vez mais. Seria evidente exagero dizer que voltaram os tempos de
culto a Mao Zedong e de leitura obsessiva do seu “livrinho vermelho”, que
chegaram a incendiar a imaginação de setores radicalizados do Ocidente
democrático. No entanto, com Xi Jinping eliminou-se a limitação de mandatos
presidenciais e reconcentrou-se o poder, derrogando-se as medidas
“democratizantes” do reformismo pós-Mao. No novo curso chinês, o admirável
bem-estar de algumas centenas de milhões de pessoas se paga com obediência
política e consenso passivo.
A Oceânia norte-americana é o mais recente –
e o mais temível – dos desastres. Não que a (contra)revolução política
trumpista tenha sido um raio em céu sereno, até pelo fato de ter tido uma
primeira e atenuada versão em 2016. Contudo, é impactante ver em ação a
constituição de um bloco nacional-populista capaz de empolgar, sob a liderança
de um demagogo, setores díspares da economia e da sociedade. Entre eles,
destaquemos os antigos colarinhos azuis, destituídos pela automação e pelo
deslocamento das fábricas, e os tecno-oligarcas da digitalização da vida, cujo
reino, estabelecido nas nuvens, não é propriamente deste mundo. Humano,
demasiadamente humano, o sofrimento dos primeiros; transumana ou pós-humana, a
fantasia de onipotência dos segundos.
Na Oceânia, a liberdade sem regras,
desconstitucionalizada, é a chave para a manipulação de um número indeterminado
de indivíduos. A verdade desaparece nas brumas da pós-verdade, como se a senha
para a entrada na massa de seguidores do líder fosse a aceitação de falsidades
autoevidentes. É nesse ponto que apareceram as diferentes, sucessivas e
tediosas teorias da conspiração, como as do nascimento queniano de Barack
Obama, a organização de festins diabólicos numa pizzaria de Washington para as
elites democratas e, last but not least, a grande mentira da adulteração dos
resultados eleitorais em 2020. Essa última, aliás, iria inspirar, como é do
conhecimento geral, a mesma atitude subversiva na passagem de poder entre nós,
em 2022.
As ondas de choque que têm se seguido ao
aparecimento do “hegemon ressentido” (Yascha Mounk), com tarifas arbitrárias,
ameaças de anexação e demais chantagens assustam sobretudo aqueles que,
independentemente da supremacia econômica desse ou daquele país, se preocupam
com a sobrevivência da modesta, mas persistente, utopia democrática. Com seu
ressentimento maciço, o hegemon suicida propicia o declínio acelerado do
próprio país e, mais do que isso, das liberdades liberais, sem as quais nós,
cidadãos e cidadãs do Ocidente político, teríamos dificuldade de sobreviver
mesmo em meio à abundância de mercadorias.
*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É COEDITOR DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL
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