Estamos em pleno mar... O mar bramia. Erguendo o dorso altivo sacudia a branca espuma para o céu sereno. O verso é parte do poema "Deus!", de Casimiro de Abreu (1839-1860). Retrata a emoção de uma criança ( geração) ao observar, assustado, o mar, e questionar quem seria mais poderoso do que ele. Em outro, "Meus oito anos", relembrava uma época de alegria, inocência e liberdade, referindo-se a ausência das " mágoas de agora", cultivadas por dois bárbaros na disputa para representar 215 milhões de cidadãos crentes no regime democrático.
O enredo dessa disputa iguala as pretensões de ambos. Mesmo que um deles tenha se livrado de uma condenação anterior, os dois estão carimbados no meio político : um, como corrupto; e o outro como golpista. Louco também. Os crimes que lhes são imputados, tem formas diferenciadas mas, no fundo, os autores se assemelham nas intenções.
A armadura de um são as "narrativas" institucionalizadas. O outro é tido como representante da brava espada de Caxias. Estaria liderando sete companheiros de farda, indicados como coniventes em nove "delações", cheias de versões, instrumento, no passado, anulado para um, e no presente válido para outro. Trata-se, na aparência, de uma luta pessoal, sob a batuta do ódio comum que se espalhou pelas esferas do Poder. Tornou-se acirrada, com os relatos e interpretações ficcionais, maniqueístas, postulando um conflito de ideias permanentes e inconciliáveis à luz do bem e das trevas, o mal. Ambos os contendores apresentam uma visão de um mundo simplista e uma realidade dividida em categorias opostas e dicotômicas, sem reconhecer a complexidade dos fenômenos da sociedade contemporânea.
Esse embate, quase cósmico, no campo institucional, veio desfigurar a autonomia dos Poderes do Estado, que passaram a refletir um roteiro já traçado. Reafirma-se, entretanto, na política, a Lei de Coulomb sobre o magnetismo, formulada em 1783, que descreve a atração entre cargas elétricas antagônicas, segundo qual "os opostos se atraem". Ao longo do tempo, vai-se descobrindo, no percurso vacilante dos próprios contendores, uma convergência intenções e estratégias, em que são usadas as mesmas táticas, acusações semelhantes, assim como nas defesas, só que de um ponto de observação diferente. No fundo, assiste-se, em nome da civilidade democrática, a uma disputa perversa, sem criatividade , nem respeito pelo cidadão comum: uma encenação teatral que desvia a atenção de gestões deficientes da coisa pública.
Os crimes de cada um : Lula foi acusado, e até condenado, por corrupção passiva: lavagem de dinheiro, digestão de propinas - caso do triplex e do sítio em Atibaia -,compra de parlamentares no Congresso , associação espúria entre o público e o privado beneficiando-se de vantagens familiares. Prega a democracia mas, não tendo como explicar seu modelo chamou-a ambiguamente de "relativa", conceito criado pelo general ditador Ernesto Geisel.
Bolsonaro, ex - capitão do Exército, defenestrado por insubordinação, está sendo acusado pelos arautos da da democracia relativa de tentativa de golpe de Estado, articulado desde que perdera a eleição para Lula (2022). Sua história, também pouco altaneira, é presa fácil das divagações e maldades associadas do petista s, que precisa de álibis para criar um debate público sobre suas projeções pessoais narcisisticas no campo sócio-político e o apagamento da memória coletiva sobre passado . Agora deputado, com nove mandatos, Bolsonaro surgiu como um tipo ideal, com sua uma voz sempre alterada , uma linguagem agressiva, em discursos ultrapassados, pareceu, naturalmente, pela sua intempestividade que não seria páreo para enfrentar o candidato de Lula - líder nas pesquisas eleitorais (2018), embora impedido de concorrer . Bolsonaro venceu Fernando Hadad ), mas iria perder para Lula na eleição seguinte (2022).
Disposto a competir novamente em 2026, com aquela folha corrida de militar indisciplinado, congressista radical de direita, tornou-se o alvo predileto do petista, e que usando o Ministério Público, acusou-o de tentativa de golpe de Estado e de chefe de organização criminosa - embora combatesse explicitamente o PCC, o Comando Vermelho e outros grupos transgressores, abrigadas, de certa forma, no seio do Estado petista. Contudo, a narrativa traçada pelos marqueteiros do Planalto dava a impressão , de forma ubíqua, que se estava voltando aos "anos de chumbo" (1964-1985), ao estado dominado pelos militares (1964-1984). Ao retornar ao poder , Lula manteve-os dentro da caserna e apreensivos com corte orçamentário na agenda, nomeando, para o ministério da Defesa , civís, alinhados .
Para tentar apagar o passado que , certamente, atormenta seus sonhos, eleito pela terceira vez, para o Executivo , conseguiu, por meio de artifícios mis, eleger para direção das duas Casas Legislativa presidentes parceiros, e aparelhou o Supremo Tribunal Federal com 8 petistas entre os dos 11 ministros , com o referendo do Congresso que, de joelhos para o Executivo, por causa do dinheiro que flui das emendas parlamentares, aprovaram os candidatos partidários do Planalto . Assim,, tornou ministros do STF seu advogado pessoal , seu Procurador da República, seu ex-ministro da Justiça, um professor petista, um advogado do partido em Curitiba. Por meio de artimanhas cooptou um ex-ministro de Temer, (vice de Dilma Roussef, que a substituiu na Presidência da República), livrando seus companheiros do Judiciário da reponsabilidade das acusações e relatoria do "suposto" golpe de Estado. Enfim, preservando-se o modelo presidencialista da democracia relativa, da legitimidade para uma ditadura, cada vez mais próxima da Venezuela.
Com cara de vingança política e argumentos jurisprudenciais de membros da Suprema Corte, Bolsonaro está sendo obrigado a subir ao cadafalso da chamada democracia relativa, não sei se confiante ou iludido de que seus advogados, ao traçar um paralelo entre processos e condenações dos dois presidentes, estariam desenvolvendo uma retórica similar para diferentes transgressões: uma, no campo criminal e , o outra, no campo político. Preocupa... Como a história desse momento de passagem na política brasileira vai ser contada para as gerações futuras? As "mágoas de agora" não tem nada a ver com as fantasias infantis de Casemiro de Abreu, muito menos com o mundo dos nativos digitais, conectados à inteligência artificial. Os espetáculo do Poder é tão efêmero! Tão indigesto! Tão velho!...Mas, nada que a IA não vai poder desmascarar.
* Jornalista e professor: doutor em História Cultural
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