quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Cadafalso da democracia relativa, por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*

Estamos em pleno mar... O mar bramia. Erguendo o dorso altivo sacudia a branca  espuma para o céu sereno. O verso é  parte do poema "Deus!", de Casimiro de Abreu (1839-1860). Retrata a emoção de uma criança ( geração) ao observar, assustado,  o mar, e questionar quem seria mais poderoso do que ele.  Em outro, "Meus oito anos", relembrava uma época de alegria, inocência e liberdade,  referindo-se a ausência das " mágoas de agora", cultivadas por dois  bárbaros na disputa para  representar 215 milhões de cidadãos crentes no regime democrático. 

O enredo dessa disputa iguala as pretensões de ambos. Mesmo que um deles tenha se livrado de uma condenação anterior,  os dois estão carimbados no meio político : um, como corrupto; e o outro  como golpista. Louco também. Os crimes que lhes são imputados, tem formas  diferenciadas mas, no fundo,  os  autores se assemelham nas intenções. 
A armadura de um são as "narrativas" institucionalizadas. O outro é tido como  representante da brava espada de Caxias. Estaria  liderando sete companheiros de farda,   indicados como coniventes  em nove  "delações", cheias de versões, instrumento, no passado,   anulado para  um, e no presente válido para outro. Trata-se, na aparência,  de uma luta pessoal,  sob a  batuta do ódio comum  que se espalhou pelas esferas do Poder. Tornou-se acirrada, com os relatos e interpretações  ficcionais, maniqueístas,   postulando  um conflito de ideias  permanentes e inconciliáveis à luz do bem e das trevas, o mal. Ambos os contendores  apresentam uma visão de um mundo simplista e uma  realidade  dividida em categorias opostas e dicotômicas, sem reconhecer a complexidade dos fenômenos da sociedade contemporânea.

Esse embate, quase cósmico, no campo institucional,   veio    desfigurar  a autonomia  dos Poderes do Estado, que passaram a refletir  um roteiro já traçado.  Reafirma-se, entretanto,  na política, a   Lei de Coulomb sobre o magnetismo, formulada em 1783, que descreve a atração entre cargas elétricas antagônicas, segundo qual  "os opostos se atraem". Ao longo do tempo, vai-se descobrindo, no percurso  vacilante dos próprios contendores, uma convergência intenções e estratégias, em que são usadas as mesmas táticas,  acusações semelhantes, assim como nas defesas, só que de um ponto de observação diferente.  No fundo,  assiste-se, em nome da civilidade democrática, a uma disputa perversa, sem  criatividade , nem  respeito pelo cidadão comum: uma encenação teatral que desvia a atenção de gestões  deficientes da coisa pública.

Os crimes de cada um : Lula foi acusado, e até condenado, por corrupção passiva: lavagem de dinheiro, digestão de propinas - caso do triplex e do sítio em Atibaia -,compra de parlamentares no Congresso , associação espúria entre o público e o privado beneficiando-se de  vantagens familiares. Prega a democracia mas, não tendo como explicar seu modelo  chamou-a   ambiguamente de "relativa",   conceito criado pelo general ditador  Ernesto Geisel.   

Bolsonaro, ex - capitão do Exército, defenestrado por insubordinação, está sendo acusado pelos arautos da da democracia relativa de tentativa de golpe de Estado, articulado desde que  perdera a eleição para Lula (2022). Sua história,  também pouco altaneira,  é presa fácil das divagações e maldades associadas do  petista  s, que precisa de álibis para criar um debate público sobre suas projeções pessoais narcisisticas  no campo  sócio-político e o  apagamento da memória coletiva sobre  passado . Agora deputado, com nove mandatos,  Bolsonaro surgiu como um  tipo ideal, com sua uma voz sempre alterada , uma linguagem agressiva, em discursos ultrapassados,  pareceu,  naturalmente, pela sua intempestividade  que não seria páreo para   enfrentar o candidato de Lula - líder nas pesquisas eleitorais (2018), embora impedido de concorrer .  Bolsonaro venceu Fernando Hadad ), mas  iria perder  para Lula na eleição seguinte (2022). 

Disposto a competir novamente em 2026,   com aquela folha corrida de militar indisciplinado, congressista radical de direita, tornou-se o alvo predileto do petista, e que usando o Ministério Público,  acusou-o de tentativa de golpe de Estado e de chefe de  organização criminosa - embora combatesse explicitamente o PCC, o Comando Vermelho e outros grupos   transgressores, abrigadas,  de certa forma, no seio do Estado petista.  Contudo, a narrativa traçada pelos marqueteiros do Planalto dava a impressão , de forma ubíqua,   que se  estava voltando aos "anos de chumbo" (1964-1985), ao  estado dominado pelos militares (1964-1984). Ao retornar  ao poder ,  Lula  manteve-os  dentro da caserna e  apreensivos com corte  orçamentário na agenda, nomeando, para o ministério da Defesa , civís, alinhados .

Para tentar apagar  o passado que , certamente, atormenta seus sonhos, eleito pela terceira vez,  para o Executivo , conseguiu, por meio de artifícios mis, eleger  para direção das duas Casas Legislativa presidentes  parceiros,    e aparelhou  o  Supremo Tribunal Federal com 8 petistas entre os  dos 11 ministros , com o referendo  do Congresso que, de joelhos para o Executivo, por causa do dinheiro que flui das emendas parlamentares, aprovaram os candidatos partidários  do  Planalto  . Assim,, tornou ministros do STF  seu advogado pessoal , seu Procurador da República, seu  ex-ministro da Justiça, um professor petista, um advogado do partido em Curitiba. Por meio  de artimanhas  cooptou   um ex-ministro  de Temer, (vice de Dilma Roussef, que a substituiu na Presidência da República), livrando seus  companheiros do Judiciário da reponsabilidade das acusações e relatoria do "suposto" golpe de Estado. Enfim, preservando-se o modelo presidencialista da democracia relativa, da legitimidade   para  uma ditadura, cada vez mais próxima da Venezuela.

Com cara de vingança política e argumentos jurisprudenciais de membros da Suprema Corte,   Bolsonaro está sendo obrigado  a subir ao  cadafalso da chamada democracia relativa,  não sei se confiante ou iludido de que seus advogados, ao traçar um paralelo entre  processos e condenações dos dois presidentes, estariam desenvolvendo uma retórica similar para diferentes transgressões: uma, no campo criminal e , o outra, no campo político. Preocupa... Como a história desse momento de passagem na política brasileira vai ser contada para as gerações futuras? As "mágoas de agora" não tem nada a ver com as fantasias infantis de  Casemiro de Abreu, muito menos  com o mundo dos nativos digitais, conectados à inteligência artificial. Os espetáculo do Poder é tão efêmero! Tão indigesto! Tão velho!...Mas, nada  que a IA não vai  poder desmascarar. 

 * Jornalista e professor: doutor em História Cultural

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