Folha de S. Paulo
Casa testou limites da decência ao tentar
blindar parlamentares da responsabilização penal
Nos grandes movimentos de protesto de 2013 e
2014, havia uma convicção disseminada de que a classe política era o grande
problema nacional. Era urgente renová-la. Foram os anos dos cartazes
"desculpem o transtorno, estamos consertando o país", e o desprezo
pela política institucional e pelos políticos "que estão aí"
tornou-se critério na escolha eleitoral.
Precisávamos de uma política nova, de novos partidos e de renovar o Congresso nacional, segundo a fórmula corrente. E, de fato, vimos surgir novos partidos (inclusive um chamado Novo), as taxas de renovação nas casas legislativas aumentaram e o bolsonarismo apareceu, vejam só, para representar um novo modo de fazer política, desta vez sem corrupção, sem apadrinhamentos, sem velhos vícios —apenas um líder carismático e o povão que governaria com ele.
Era a 54ª legislatura, severamente julgada e
condenada, e o debate público refletia a ingenuidade e a agressividade das ruas.
Enquanto a fúria movia a massa contra a política institucional, o que me
ocorria pensar era: não gostam desta legislatura? Esperem para ver a próxima.
Pois tem sido assim em toda parte: quando os que detestam a política se
mobilizam com raiva para escolher uma nova classe política, conseguem
invariavelmente piorar o que já era ruim.
Estamos na 57ª legislatura da nossa breve
história republicana. A "nova política", dominante desde a 56ª,
continua mostrando a força dos três C (corrupta, clientelista e corporativa)
que a constituem. Os novos políticos (mesmo os mais jovens) são, em geral,
parecidos com os dinossauros cujos lugares ocuparam, exceto pela habilidade
digital.
Não há sinal de que a cota de virtude
republicana tenha aumentado, de que os interesses dos eleitores tenham tomado o
lugar central concedido aos interesses particulares no Congresso ou de que a
transparência pública, o respeito ao decoro e a abnegação que se esperam de
servidores do povo tenham sido incorporados à mentalidade parlamentar. A única
coisa que aumentou, exponencialmente, foi o poder das casas legislativas e o
acesso dos parlamentares aos recursos do orçamento público.
Um exemplo claro do valor da 57ª foi dado na
semana passada. Às pressas e na calada da noite, tentou-se aprovar nada menos
que uma emenda constitucional —de caráter despudoradamente corporativo. Não
houve divulgação prévia nem discussão pública. Chegaram ao ponto de os
deputados tentarem emendar a nossa Constituição sem sequer ter um texto escrito
e conhecido. A Carta Magna da nação, amigos, não o regimento interno.
A emenda previa que qualquer investigação
contra parlamentares dependeria de autorização política da Câmara dos
deputados ou do Senado;
que condenações criminais só poderiam ocorrer com dois terços do STF; que
prisões preventivas e medidas cautelares precisariam de aval político e revisão
periódica do Congresso; e, por fim, que o Judiciário ficaria proibido de
revisar decisões do Legislativo que suspendessem processos.
Em resumo, os congressistas pretendiam
praticamente constitucionalizar sua imunidade contra a responsabilização penal.
Há, como se diz, tantas camadas de erro nesta
tentativa que é até difícil escolher o que destacar. O líder do PL, deputado Sóstenes
Cavalcante (RJ), perfeita síntese desta legislatura, nada viu
de errado nem na intransparência nem em legislar em causa própria. "Lógico
que essa não é uma pauta do eleitor", disse, candidamente. O presidente da
Câmara, Hugo Motta, também se expressou com a mesma candura: "É uma
demanda que atende o espírito da Casa". Só a ele, diga-se.
Para que ocupar a mente dos brasileiros com
bobagens como emendas à Constituição se a pauta nem é deles, mas dos que
exercem mandatos, supostamente, em seu nome? Afinal, tem dia que o Congresso é
do povo e tem dia que ele é só o órgão sindical dos parlamentares. Se interessa
ou não ao povo brasileiro que o sindicato dê imunidade aos seus, isso é
irrelevante. Cada um se ocupe dos próprios interesses: os Sóstenes,
cavalcantes, cuidam dos seus; o povo, cavalgado, que dê seus pulos.
Claro, o impulso imediato dos ainda lúcidos
na selva política é lançar aos parlamentares brasileiros a pergunta imortal de
Joseph Welch a McCarthy, muitos anos atrás: "Os senhores não têm nenhum
senso de decência, afinal? Já não lhes resta nenhum?". Mas de que
adiantaria, se em 2026 —como temo— eleitores movidos por raiva e nojo da classe
política escolherão outros espécimes da mesma fauna para compor a nobre 58ª
legislatura, renovando o ciclo de más escolhas, frustração, raiva e novas más
escolhas?
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