Folha de S. Paulo
O que mais surpreendeu não foram as palavras e os gestos, mas sim a própria existência desse julgamento
O primeiro
dia do julgamento do chamado núcleo essencial da trama golpista não
trouxe nenhuma surpresa. O relatório apresentado pelo ministro Alexandre
de Moraes foi um resumo técnico e objetivo de um processo complexo. O
que chamou mais a atenção foi o preâmbulo do relatório, em que deixou
claro que a busca de pacificação não passaria pela impunidade. Também
deixou claro que as ameaças
e tentativas de obstrução não afastariam o tribunal de cumprir sua
missão.
O procurador-geral da República, por sua vez, fez uma leitura serena e pausada dos fatos. Paulo Gonet concentrou seus esforços, no entanto, em oferecer um enredo para a trama golpista, buscando demonstrar que em tentativas de golpe ou de abolição do Estado Democrático de Direito a conduta criminosa não depende do sucesso da empreitada, mas do conjunto de atos praticados ao longo do caminho que têm por objetivo colocar fim à ordem democrática.
Coube a uma sucessão
de advogados, no exercício essencial do direito de defesa, questionar a
materialidade das provas, o
peso dado à delação e a sua própria validade, assim como as imputações
feitas pela acusação a cada um dos réus. Não houve sobressalto ou movimento
dramático, ainda que as críticas à peça de acusação tenham sido contundentes.
O que mais surpreendeu, portanto, não foram
as palavras e os gestos, mas sim a própria existência desse julgamento. Não é
nada trivial que, num país marcado por grandes conciliações, recorrentes
anistias e um legado de impunidade em relação a todos aqueles que
historicamente atentaram contra a ordem constitucional, um
ex-presidente da República, que ainda detém enorme popularidade e forte
apoio parlamentar, esteja sendo julgado pela tentativa de promover um golpe de
Estado. Mais surpreendente ainda é que esse julgamento esteja ocorrendo numa
quadra da história em que tribunais têm sido cooptados ou simplesmente
atropelados por lideranças
autoritárias ao redor do mundo.
Difícil prever quais serão as consequências
políticas desse julgamento. Caso se confirme a tendência de condenação, não
contribuirá, no curto prazo, para a pacificação da sociedade brasileira ou
mesmo para o fim das pressões do presidente
norte-americano. Ao contrário.
No médio e no longo prazo, no entanto, a
condenação de um líder autoritário e de militares desleais ao regime
constitucional, rompendo com uma tradição de impunidade, poderá contribuir
enormemente para que o regime político brasileiro fique menos vulnerável a
golpistas, aventureiros e mesmo àqueles que se arvoram à condição de guardiões
da República.
Como a ampla
cobertura internacional tem apontado, o julgamento da trama golpista
pelo Supremo Tribunal Federal representa também a esperança de que as
instituições constitucionais, modeladas a partir do segundo pós-guerra e da
terceira onda de democratização, demonstrem alguma capacidade de colocar
barreiras àqueles que buscam destruí-las. Como afirma a matéria
amplamente divulgada da revista The Economist, o Brasil hoje passou a
simbolizar um exemplo de resistência ao populismo autoritário. Resistência
exercida pela sociedade civil, por largas parcelas do corpo político, mas
também pelas instituições de aplicação da lei.
O enorme desafio do Supremo Tribunal Federal
nas próximas semanas é levar a cabo um julgamento idôneo, que respeite todos os
princípios do devido processo, produzindo sentenças pertinentes e consistentes
com a responsabilidade de cada um.
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