quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Rompendo o ciclo de impunidade, por Oscar Vilhena Vieira

Folha de S. Paulo

O que mais surpreendeu não foram as palavras e os gestos, mas sim a própria existência desse julgamento

primeiro dia do julgamento do chamado núcleo essencial da trama golpista não trouxe nenhuma surpresa. O relatório apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes foi um resumo técnico e objetivo de um processo complexo. O que chamou mais a atenção foi o preâmbulo do relatório, em que deixou claro que a busca de pacificação não passaria pela impunidade. Também deixou claro que as ameaças e tentativas de obstrução não afastariam o tribunal de cumprir sua missão.

O procurador-geral da República, por sua vez, fez uma leitura serena e pausada dos fatos. Paulo Gonet concentrou seus esforços, no entanto, em oferecer um enredo para a trama golpista, buscando demonstrar que em tentativas de golpe ou de abolição do Estado Democrático de Direito a conduta criminosa não depende do sucesso da empreitada, mas do conjunto de atos praticados ao longo do caminho que têm por objetivo colocar fim à ordem democrática.

Coube a uma sucessão de advogados, no exercício essencial do direito de defesa, questionar a materialidade das provas, o peso dado à delação e a sua própria validade, assim como as imputações feitas pela acusação a cada um dos réus. Não houve sobressalto ou movimento dramático, ainda que as críticas à peça de acusação tenham sido contundentes.

O que mais surpreendeu, portanto, não foram as palavras e os gestos, mas sim a própria existência desse julgamento. Não é nada trivial que, num país marcado por grandes conciliações, recorrentes anistias e um legado de impunidade em relação a todos aqueles que historicamente atentaram contra a ordem constitucional, um ex-presidente da República, que ainda detém enorme popularidade e forte apoio parlamentar, esteja sendo julgado pela tentativa de promover um golpe de Estado. Mais surpreendente ainda é que esse julgamento esteja ocorrendo numa quadra da história em que tribunais têm sido cooptados ou simplesmente atropelados por lideranças autoritárias ao redor do mundo.

Difícil prever quais serão as consequências políticas desse julgamento. Caso se confirme a tendência de condenação, não contribuirá, no curto prazo, para a pacificação da sociedade brasileira ou mesmo para o fim das pressões do presidente norte-americano. Ao contrário.

No médio e no longo prazo, no entanto, a condenação de um líder autoritário e de militares desleais ao regime constitucional, rompendo com uma tradição de impunidade, poderá contribuir enormemente para que o regime político brasileiro fique menos vulnerável a golpistas, aventureiros e mesmo àqueles que se arvoram à condição de guardiões da República.

Como a ampla cobertura internacional tem apontado, o julgamento da trama golpista pelo Supremo Tribunal Federal representa também a esperança de que as instituições constitucionais, modeladas a partir do segundo pós-guerra e da terceira onda de democratização, demonstrem alguma capacidade de colocar barreiras àqueles que buscam destruí-las. Como afirma a matéria amplamente divulgada da revista The Economist, o Brasil hoje passou a simbolizar um exemplo de resistência ao populismo autoritário. Resistência exercida pela sociedade civil, por largas parcelas do corpo político, mas também pelas instituições de aplicação da lei.

O enorme desafio do Supremo Tribunal Federal nas próximas semanas é levar a cabo um julgamento idôneo, que respeite todos os princípios do devido processo, produzindo sentenças pertinentes e consistentes com a responsabilidade de cada um.

 

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