quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A guerra do Rio virou paisagem, por Mariliz Pereira Jorge

Folha de S. Paulo

Todos ficam à espera de que a chuva passe, os corpos sejam recolhidos e o sangue seque; e eu me incluo nessa crítica

Enquanto o governador segue sentado sobre uma política de segurança pública falida, nós estamos aqui, aplaudindo o pôr do sol

violência no Rio de Janeiro parece uma chuva de verão. Quando engrossa, as pessoas evitam sair de casa para não ficarem presas num alagamento, mas depois a vida volta ao normal.

Ainda mais que os tiroteios, os mortos e o sangue só escorrem bem longe daqui —do lado limpinho da cidade. A morte é vizinha de todos que nasceram em CEP longe dos cartões-postais do Rio. Depois de passar o dia afundada em reuniões —dentro de casa, claro—, procurei por notícias em grupos diversos.

As que chegaram eram de "vida que segue". Num deles, muito útil, onde consigo dicas variadas para facilitar a vida, havia pedidos de indicação de recepcionista, de casa para o Réveillon, professor de matemática, oftalmologista e por aí afora.

Nem parece que há um toque de recolher informal, ruas vazias, mortos empilhados, crise de segurança pública, uma queda de braço entre o governador e o ministro da Justiça.

Todos os bastidores de uma tragédia sem fim, vivida todos os dias no lado mais feio e miserável da cidade, que de tempos em tempos espalha um pouco de medo para além dos túneis que separam esses mundos tão distantes.

Nos meus primeiros anos de Rio —lá se vão 13—, as pessoas ainda fingiam alguma indignação pelo abismo social que divide a cidade. Mesmo com prazo de validade, ela estava ali nas redes sociais, nos grupos de WhatsApp.

Hoje, pouca gente faz de conta que se importa com a parte esquecida pela sociedade, aquela que mais sofre com o abandono e a insegurança. Todos à espera de que a chuva passe, os corpos sejam recolhidos e o sangue seque.

E eu me incluo nessa crítica. Aos poucos, fui corrompida pela beleza e pela boa vida de quem pode. Deixei de ser a forasteira inconveniente, me acovardei e me resignei com a tragédia que parece não ser minha só porque não bateu na minha porta de casa. Por enquanto.

O governador Cláudio Castro (PL) segue sentado sobre uma política de segurança pública falida. E nós, aqui, aplaudindo o pôr do sol.

 

 

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