Folha de S. Paulo
Todos ficam à espera de que a chuva passe, os
corpos sejam recolhidos e o sangue seque; e eu me incluo nessa crítica
Enquanto o governador segue sentado sobre uma
política de segurança pública falida, nós estamos aqui, aplaudindo o pôr do sol
A violência no Rio de
Janeiro parece uma chuva de verão. Quando engrossa, as pessoas
evitam sair de casa para não ficarem presas num alagamento, mas depois a vida
volta ao normal.
Ainda mais que os tiroteios, os mortos e o sangue só escorrem bem longe daqui —do lado limpinho da cidade. A morte é vizinha de todos que nasceram em CEP longe dos cartões-postais do Rio. Depois de passar o dia afundada em reuniões —dentro de casa, claro—, procurei por notícias em grupos diversos.
As que chegaram eram de "vida que
segue". Num deles, muito útil, onde consigo dicas variadas para facilitar
a vida, havia pedidos de indicação de recepcionista, de casa para o Réveillon,
professor de matemática, oftalmologista e por aí afora.
Nem parece que há um toque de
recolher informal, ruas vazias, mortos empilhados, crise de
segurança pública, uma queda de
braço entre o governador e o ministro da Justiça.
Todos os bastidores de uma tragédia sem fim,
vivida todos os dias no lado mais feio e miserável da cidade, que de tempos em
tempos espalha um pouco de medo para além dos túneis que separam esses mundos
tão distantes.
Nos meus primeiros anos de Rio —lá se vão
13—, as pessoas ainda fingiam alguma indignação pelo abismo social que divide a
cidade. Mesmo com prazo de validade, ela estava ali nas redes sociais, nos
grupos de WhatsApp.
Hoje, pouca gente faz de conta que se importa
com a parte esquecida pela sociedade, aquela que mais sofre com o abandono e a
insegurança. Todos à espera de que a chuva passe, os corpos sejam recolhidos e
o sangue seque.
E eu me incluo nessa crítica. Aos poucos, fui
corrompida pela beleza e pela boa vida de quem pode. Deixei de ser a forasteira
inconveniente, me acovardei e me resignei com a tragédia que parece não ser
minha só porque não bateu na minha porta de casa. Por enquanto.
O governador Cláudio
Castro (PL) segue sentado sobre uma política de segurança
pública falida. E nós, aqui, aplaudindo o pôr do sol.

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