Correio Braziliense
É estranho criar um dia para lembrar as
vítimas do comunismo na União Soviética quando, no Brasil, os comunistas sempre
foram as vítimas
Ao criar o Dia da Memória das Vítimas do Comunismo, o governador do Distrito Federal se refere, provavelmente, às vítimas do regime comunista da antiga União Soviética, que desapareceram há quase meio século. Não está considerando as vítimas da Rússia capitalista na Ucrânia, nem os 6 milhões — quase todos judeus — mortos pelo regime de direita nazista na Alemanha. Tampouco considera os 1.700 israelenses mortos e os cerca de 300 sequestrados, vítimas do terrorismo do Hamas, nem os 70 mil mortos e condenados à fome por Israel no gueto de Gaza. Ainda menos, não leva em conta as dezenas de milhares de presos, torturados, exilados ou os mortos pela ditadura militar de direita capitalista no Brasil.
É estranho criar um dia para lembrar as
vítimas do comunismo na União Soviética quando, no Brasil, os comunistas sempre
foram as vítimas — nos 10 anos do Estado Novo e nos 21 anos da ditadura militar
—, sem promover um dia em memória das vítimas passadas do regime militar e das
vítimas da corrupção em nosso regime democrático.
Seria justo decretar um dia de memória pelos
400 mil mortos que teriam sobrevivido à covid-19 se o presidente daquela época
tivesse o mínimo de sensibilidade e competência — em vez do
escárnio e da estupidez com que tratou os doentes e seus familiares, recusando
vacinas, zombando dos mortos, chamando-os de fracos.
O governador lembrou-se de vítimas do
comunismo na finada URSS, mas não teve consideração pela memória dos brasileiros
que enfrentam a tragédia da saúde pública no DF, provocada pela inoperância e
pela corrupção. Apesar dos bilhões transferidos anualmente ao GDF pelo resto do
Brasil, pela primeira vez na história há brasilienses indo buscar atendimento
na rede pública de Goiás, porque não encontram tratamento dentro do nosso
quadrilátero. É preciso um dia de memória para os que são obrigados a esse
percurso e para os que sentem vergonha do estado em que a incompetência, o
descuido e a corrupção deixaram o que antes era exemplo de excelência no
sistema público de saúde do Brasil, com o programa Saúde em Casa.
Deveríamos ter um dia de memória para as
crianças que morreram por descuido com a saúde e com a segurança da população.
Nenhum dia foi proposto em homenagem às crianças assassinadas — como ocorreu
com Isaac Vilhena, morto no último dia 17, aos 16 anos, entre as quadras 112 e
113 Sul. O governo do DF não sancionou uma lei criando o dia da memória dos 4
milhões de escravizados trazidos da África, nem dos nascidos no Brasil,
transportados por nove meses no ventre de suas mães, tampouco de seus
descendentes, que até hoje estudam em escolas-senzala. Não decretou um dia em
memória dos 20 a 30 milhões de brasileiros que viveram e morreram sem saber ler
e escrever devido ao descaso histórico de nossos governantes com a educação de
nosso povo. Nem pensou em lembrar dos que morreram de fome em país exportador
de alimentos.
Somadas ao longo da história, o número de
vítimas da corrupção — seja pela escolha errada de prioridades nas políticas
públicas, seja pelo comportamento dos políticos que roubam em vez de cuidar do
povo — é maior do que das vítimas dos crimes do comunismo em terras distantes e
tempos passados.
Devemos lembrar as incontáveis vítimas de
doenças e mortes decorrentes da ausência de saneamento, por descuido,
incompetência e corrupção que desviam verbas públicas; também as vítimas da
falta de remédios e de equipamentos hospitalares; e as vítimas morais — os
habitantes do DF envergonhados com a imagem, no dia 8 de janeiro de 2023, da
inoperância de nossa segurança pública, incapaz de evitar a depredação dos
prédios que simbolizam a democracia. Vergonha por não sabermos se o governo
daquele momento foi incompetente ou se participou da tentativa de golpe,
levando o secretário de Segurança e integrantes da nossa gloriosa Polícia
Militar a perderem suas carreiras e serem condenados à prisão, enquanto seus
superiores são inocentados.
Não se trata de discutir se as vítimas distantes do comunismo merecem ser lembradas no DF, mas de denunciar a hipocrisia derivada da embriaguez eleitoral de quem quer agradar aos golpistas. Precisamos de um Dia da Memória das Vítimas de Governos Locais Incompetentes, Corruptos e Embriagados Eleitorais. Uma data apropriada seria o 8 de Janeiro, dia da nossa vergonha — com os que mostraram a cara no golpe e com aqueles que se esconderam, jogando a culpa em subordinados.

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