O Estado de S. Paulo
Segundo Angela Merkel, o presidente russo é
um líder do século 19 agindo no século 21
A melhor definição de Vladimir Putin foi
dada por Angela
Merkel, a ex-chanceler alemã. Segundo ela, o presidente russo é um líder do
século 19 agindo no século 21, um nacionalista disposto a anexar Estados
soberanos numa era de direito internacional e globalização. Merkel conhece bem
Putin. Visitaram-se várias vezes enquanto coincidiram no poder, e conversavam
sem intérprete – um é fluente na língua do outro.
Merkel nasceu na Alemanha Oriental. Escapou de um totalitarismo para liderar informalmente a União Europeia, um clube de democracias. Putin é um nostálgico da Rússia totalitária, mais a czarista que a comunista. Merkel era frequentemente dura com Putin. Ele respondia ora com flores, ora soltando na sala seu labrador Koni. Merkel tinha medo de cães, mas não demonstrava na frente de Putin. E colocava os galanteios machistas na conta do século 19.
Daniel Pineu, entrevistado no minipodcast
da semana, é pesquisador na área de segurança internacional na Universidade de
Amsterdam. Foi ele quem me lembrou da frase de Merkel, dita em 2014. “Putin
pode ser definido como um ultranacionalista conservador. Em vez de olhar para o
futuro, quer um retorno à grandeza passada, à grandeza imperial, à grandeza da
Guerra Fria”, diz Pineu.
O pesquisador me recomendou a leitura de um
ensaio escrito por Putin. O título é Sobre a unidade histórica de russos e
ucranianos, e está anexado à versão digital da coluna. No texto fica claro por
que Putin considera a Ucrânia seu
quintal – e por que, homem do século 19 que é, acha que tem o direito de
invadi-la.
O problema de viver no passado é que o
presente cobra a conta. Os cidadãos ucranianos – pesquisas acadêmicas já haviam
sinalizado – não se sentem num quintal de Moscou. A resistência à invasão tem
sido maior do que Putin esperava. Enquanto isso, sanções internacionais
provocam estragos na economia russa, expondo o que talvez seja um erro de
cálculo do homem do século 19.
Idolatrado pela extrema direita que assedia
a imprensa, Putin deu ordem para que os jornais de seu país não usassem as
palavras “guerra” e “invasão”. O russo Dmitry
Muratov, editor da Novaya Gazeta e vencedor do Nobel da Paz, afirmou em
entrevista à The New Yorker que vai chamar “guerra” de “guerra”, desafiando a
censura do autocrata.
A condenação quase unânime a Putin, da esquerda democrática à direita liberal, foi uma reação do século 21 contra o século 19. Como o Convidado de Pedra da ópera Don Giovanni, Putin é uma estátua do passado a assombrar o presente – daquelas que acabamos por destruir, quando os ventos da História mudam de direção.
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