sábado, 5 de março de 2022

Carlos Alberto Sardenberg: A Rússia é culpada, sem adversativas

O Globo

Como não dá a menor atenção a questões ambientais, sociais e de sustentabilidade, o presidente Putin não percebeu a enorme mudança ocorrida nas corporações privadas ocidentais: a era da responsabilidade social. E, assim, cometeu o maior erro de cálculo de seu ataque à Ucrânia: não imaginou que as grandes multinacionais, envolvidas em negócios bilionários com o governo e empresas russas, pudessem aderir de maneira avassaladora às sanções contra o país.

Todas essas multinacionais estão perdendo muito dinheiro. A Embraer informou que não prestará mais assistência aos 30 aviões que voam na Rússia. Nem assistência técnica, nem fornecimento de peças. Logo, deixa de receber dólares por um serviço.

A BP simplesmente cancelou sua participação no capital de empresas petrolíferas russas — assimilando uma perda patrimonial de US$ 25 bilhões e perdendo acesso a importantes reservas de óleo e gás.

Por que fazem isso? Porque, no mundo corporativo contemporâneo, contam muito os valores éticos, a responsabilidade com o público e a sociedade.

Muita gente dizia que isso de ESG — environmental, social and governance — era puro marketing. Uma enganação para parecer politicamente correto. Mas o verdadeiro cancelamento que as multinacionais impuseram aos negócios com a Rússia teve efeitos devastadores. As ações das 11 maiores empresas russas listadas na Bolsa americana Dow Jones viraram pó. Uma queda de 98%!

Perderam riqueza empresas e pessoas russas, mas também empresas e pessoas do mundo ocidental.

As sanções de governos eram esperadas. Mesmo assim, foram mais fortes do que se imaginava e podem escalar com a proibição total de importação de petróleo e gás russos. A adesão tão completa das multinacionais — às vezes, mais forte que as governamentais — é a parte nova desta história.

O isolamento global imposto à Rússia é uma atitude ao mesmo tempo geopolítica e moral. É para dizer: não, a Rússia não pode invadir a Ucrânia e ponto final. A Rússia é a criminosa; a Ucrânia, a vítima. E a ordem jurídica internacional, tal como definida na Carta da ONU, também é vítima. A Rússia viola escandalosamente o princípio de integridade territorial.

São inteiramente equivocadas as análises segundo as quais a Rússia se sentiu ameaçada pelo avanço da União Europeia e da Otan na direção do Leste Europeu, dos ex-satélites soviéticos. Sei que gente bem-intencionada diz isso. Ainda assim, é um grave equívoco. E, sim, equivale a dar razão a Putin.

A Rússia não estava sob nenhuma ameaça militar. O que estava e está se desfazendo é a ideologia sustentada por Putin, segundo a qual os valores ocidentais —liberdade individual, direitos de minorias, imprensa e partidos livres e o modo ESG —estavam em colapso.

A tremenda reação do Ocidente provou o contrário. Assim, pessoal, nada de adversativas, nada de “mas, porém”.

Compreendo que muita gente não gosta de ver que o Ocidente está do lado certo desta vez. Como Lula. Ele disse no México que os presidentes “envolvidos” deveriam cessar a guerra. “Envolvidos” — eis uma expressão marota, para dizer o mínimo. A Ucrânia está envolvida na guerra ... como vítima. É o cúmulo do mau-caratismo pedir que ela, Ucrânia, cesse a guerra. E entregue tudo para o agressor?

Aliás, Bolsonaro também não condena a Rússia.

Também é equivocado — e maneira indireta de dar razão a Putin — dizer que é perigoso acuar o ditador russo. Trata-se do contrário: é perigoso para o mundo deixar que Putin execute seu imperialismo criminoso sem nenhuma oposição.

Os países do Leste Europeu que aderiram ou estão aderindo à União Europeia e à Otan o fizeram livremente. Nem precisa pensar muito para entender por quê. Você preferiria aliar-se a uma Europa democrática e rica ou a uma ditadura imperialista?

As sanções geram uma inflação mundial. Mas, como disse o presidente Zelensky, um dólar a mais no preço da gasolina não parece caro diante do crime cometido contra o povo ucraniano.

Só as sanções podem levar o povo russo a deter Putin. 

 

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