Valor Econômico
Desde 2003 a Selic sempre supera a inflação, com uma única exceção, em 2020, por causa da pandemia
Um ano atrás, saiu neste espaço a história do
senhor D. Dizia que ele e a esposa, senhora D, decidiram se aposentar em 2014,
quando pretendiam abrir uma pequena metalúrgica de precisão.
O senhor D, na época com 55 anos, tinha
experiência nessa área em que trabalhara durante três décadas. Com o dinheiro
que o casal receberia nas duas aposentadorias, incluindo FGTS, férias atrasadas
e outras indenizações, ambos pensavam em abrir o próprio negócio.
Já em 2015, recebidas as indenizações,
surpreenderam-se com um saldo bancário de uns R$ 3 milhões, incluindo aí a
poupança própria. Felizes, tiraram dois meses de férias e deixaram o dinheiro
aplicado em um fundo de renda fixa. Na volta, viram o saldo aumentado para R$
3,060 milhões. Ou seja, haviam embolsado R$ 60 mil em dois meses sem mexer uma
palha, enquanto curtiam praias.
Vendo esse ganho, bateu no casal uma enorme preguiça de enfrentar a burocracia para a abrir a metalúrgica: alugar galpão, comprar ferramentas e máquinas, contratar empregados etc. Ambos concordaram, então, em adiar os planos de empreender e [deixar o dinheiro aplicado.
Dois anos depois, em 2017, o saldo da
aplicação havia subido para R$ 3,840 milhões, embora os D tenham feito resgates
de uns R$ 230 mil ao longo do período para complementar suas aposentadorias.
Foi então que acharam melhor continuar a
viver de renda. Levaram um susto na pandemia, quando a taxa de juros básica
(Selic) caiu para 2% ao ano, mas depois tudo voltou ao normal, com juros sempre
bem acima da inflação. Em setembro de 2024, o saldo do fundo estava em R$ 6,190
milhões, mesmo com resgates mensais de R$ 12 mil a R$ 17 mil. Agora, no fim de
setembro deste ano, o valor atingia R$ 6,720 milhões, com rendimento líquido de
R$ 530 mil (8,5%) durante 12 meses, mais de três pontos percentuais acima da
inflação mesmo tendo o casal sacado uns R$ 100 mil no período.
No ano passado, o casal D fez um
agradecimento aos três presidentes do Banco Central nos dez anos anteriores
pela manutenção de juros reais: Alexandre Tombini, Ilan Goldfajn e Roberto
Campos Neto. Quando o presidente Lula indicou Gabriel Galípolo para substituir
Campos Neto, no fim de 2024, os D se preocuparam, temendo que ele pudesse fazer
um rápido corte dos juros. Mas isso não aconteceu e eles agradecem, porque a
Selic atual, de 15% ao ano, garante o crescimento real de seus recursos.
O senhor D tem lido previsões do mercado
sobre o início do corte da Selic a partir de janeiro ou março. Mesmo se houver
forte redução, ele não vai mais empreender - se acha velho. Poderá talvez
diversificar a aplicação para investimentos menos conservadores.
O casal D não se arrepende de ter desistido
de abrir a metalúrgica em 2014/2015. Ambos admitem que talvez possam ter
perdido a chance de se tornarem muito ricos nesses 11 anos, caso a empresa
tivesse sucesso. O país deixou de ganhar uma indústria e alguns empregos, mas
eles estão felizes porque não correram riscos e tiveram anos tranquilos,
vivendo de renda.
A história do casal D é simples, simplória
até, mas precisa ser lembrada quando o BC, mesmo com a queda da inflação e do
ritmo de crescimento da economia, mantém a Selic em 15% ao ano e os juros reais
beiram 10%. Desde 2003, num persistente cacoete brasileiro, a Selic sempre
supera a inflação, com uma única exceção, em 2020, por causa da pandemia (ver as taxas médias no gráfico).
Uns economistas explicam que isso tem sido
necessário para controlar a inflação, porque os governos desse período
insistiram em gastar mais do que arrecadaram. Outros afirmam que os juros são
também causa do déficit do governo, porque impedem investimentos, aumentam a
dívida pública e reduzem o crescimento do PIB e das receitas.
Os D evitam essa discussão, muito técnica, e
demonstram uma certa vergonha de contar que têm renda de quase R$ 1 milhão em
12 meses sem trabalhar. Preferem dizer apenas que sua decisão de viver de renda
deu certo. Eles mantêm gastos modestos, mas a aplicação financeira de baixo
risco, rendendo sempre mais que a inflação, permitiu-lhes atravessar esses anos
sem nunca perder o sono por problemas de dinheiro.
De fato, no período de 2015 até agora, a
inflação acumulada atingiu cerca de 75%. E o saldo líquido do fundo de renda
fixa escolhido pelos D cresceu 115%, embora tenham feito resgates de pouco mais
de R$ 1,5 milhão em 11 anos.
PS: Desculpem, senhor e senhora D, há assuntos menos técnicos e mais palatáveis, como COP, tarifaço, segurança, mas é preciso continuar falando sobre juros altos, suas causas e seus efeitos. E não precisam ter vergonha: vocês são o ramo pobre entre os ganhadores da bet brasileira da financeirização, a BetSelic.

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