O Estado de S. Paulo
Quando passa-se a aviltar nossa soberania para tentar obter a anistia, não se pretende pacificação
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, declarou que, se eleito, seu primeiro ato será conceder a graça
(indulto pessoal) a Jair Bolsonaro, que, por óbvio, reconhece que será
condenado. Dessa maneira, seu principal compromisso é desfazer a decisão em
defesa da democracia editada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Que começo!
Assim, é evidente que a anistia ganhará
impulso por causa de bajuladores de Bolsonaro, que pretendem ser ungidos como
candidatos in pectore do expresidente. A anistia será tema da direita a partir
de agora. Por isso, dedico-me a analisar o significado do instituto e seu
possível cabimento.
O legislador, ao criar uma norma incriminadora, avalia a conduta escolhida como lesiva a um valor importante à convivência social, tanto que ameaça a imposição de pena, caso seja praticada a conduta violadora.
Colhe, portanto, o legislador na realidade
social quais os valores vivenciados pela sociedade que devam ser reputados
essenciais, sendo contraponto eventual a revogação da norma incriminadora ou a
anistia. Determinado comportamento delituoso pode ser considerado não mais
lesivo graças à anistia, deixando de incidir a resposta penal. O fato
criminoso, sucedido em dadas condições, quando objeto de anistia, torna-se
indiferente perante a lei penal.
A qualificação como delito desfaz-se e, de
conseguinte, suprime-se o processo ou as consequências penais, em caso de já
aplicadas. Como medida excepcional, que suspende a aplicação da norma penal,
cabe perquirir quando se justifica a anistia.
São valores protegidos pelos artigos 359-L e
359-M do Código Penal o livre exercício dos Poderes e a incolumidade do governo
legítimo, fruto do pluralismo político e da escolha do governante por via do
voto direto, secreto e universal, sendo vedada a cassação de direitos
políticos, a serem perdidos apenas em razão de condenação criminal.
Resta, então, ver em que situações a tutela
destes valores protegidos pelo Direito Penal poderia ser excepcionalmente
suspensa. São três hipóteses:
1) Considerar que, na forma praticada, os
comportamentos delituosos deixaram de ser tidos como lesivos ao bem jurídico
“Estado de Direito” e devem ficar isentos de repressão penal;
2) Ser medida de transição, na passagem de um
regime autoritário para o Estado de Direito; e
3) Ser providência que o titular do Poder
legítimo toma diante dos antagonismos existentes, para promover uma
pacificação.
Nenhuma das três hipóteses, todavia, se
apresenta a justificar o levantamento da resposta penal ao ataque ao Estado de
Direito promovido por Bolsonaro e sua trupe.
As tentativas de golpe de Estado e de impedir
o exercício dos Poderes permanecem como ferida na consciência da sociedade, não
havendo esgarçamento da importância da democracia a ser reafirmada por meio da
resposta penal. A desmoralização contínua do processo eleitoral foi o pano de
fundo indutor da violência dos acólitos no seu avanço sobre a sede dos Três
Poderes. Esta forte imagem de destruição ainda perdura na mente dos
brasileiros.
A segunda hipótese corresponde à anistia de
agosto de 1979, proposta pelo presidente Figueiredo, que, mesmo em projeto
deficiente, afirmava: “A anistia reabre o campo da ação política, enseja o
reencontro, reúne e congrega a construção do futuro”.
Estávamos em meio ao processo de distensão, o
gradualismo, como se pode constatar da Lei de Segurança Nacional de 1983, em
cujo artigo 16 constava como crime: “Integrar ou manter associação, partido
(...) que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de
Direito”. Reconhecia-se, portanto, que do regime vigente passava-se ao Estado
de Direito. Era um momento de transição para o Estado de Direito.
Em fins de 2022 não se estava em transição
política, apenas dando-se continuidade à democracia, malgrado as diatribes de
Bolsonaro contra o sistema eleitoral.
A terceira hipótese diz respeito a ser a
anistia uma ferramenta para apaziguamento. Os atuais defensores da anistia não
procuram pacificação, mas impunidade. Realizam campanha agressiva, a demonstrar
a total falta de obediência ao jogo democrático, de que é exemplo o motim
promovido pelos parlamentares bolsonaristas que ocuparam pela força a Mesa
Diretora da Câmara dos Deputados.
Os deputados não exerceram o legítimo
expediente da obstrução, próprio do jogo parlamentar, mas impediram com
violência que a Câmara dos Deputados viesse a exercer suas funções, em conduta
similar à que é objeto do pedido de anistia.
A campanha em curso pela anistia, cujo único
beneficiário que interessa é Bolsonaro, incluiu em sua estratégia o ataque ao
nosso país pela potência norte-americana. Quando passa-se a aviltar nossa
soberania para tentar obter a anistia, não se pretende pacificação.
Os crimes contra o Estado de Direito são
imprescritíveis, a indicar que não basta o passar do tempo para se extinguir a
punibilidade. Como medida excepcional, é preciso mais, ou seja, a ocorrência
das hipóteses acima mencionadas, o que não sucede. Com essa anistia, apenas
corre-se o risco de animar a preparação de novo golpe.
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