sábado, 6 de setembro de 2025

Anistia para um novo golpe. Por Miguel Reale Júnior

O Estado de S. Paulo

Quando passa-se a aviltar nossa soberania para tentar obter a anistia, não se pretende pacificação

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, declarou que, se eleito, seu primeiro ato será conceder a graça (indulto pessoal) a Jair Bolsonaro, que, por óbvio, reconhece que será condenado. Dessa maneira, seu principal compromisso é desfazer a decisão em defesa da democracia editada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Que começo!

Assim, é evidente que a anistia ganhará impulso por causa de bajuladores de Bolsonaro, que pretendem ser ungidos como candidatos in pectore do expresidente. A anistia será tema da direita a partir de agora. Por isso, dedico-me a analisar o significado do instituto e seu possível cabimento.

O legislador, ao criar uma norma incriminadora, avalia a conduta escolhida como lesiva a um valor importante à convivência social, tanto que ameaça a imposição de pena, caso seja praticada a conduta violadora.

Colhe, portanto, o legislador na realidade social quais os valores vivenciados pela sociedade que devam ser reputados essenciais, sendo contraponto eventual a revogação da norma incriminadora ou a anistia. Determinado comportamento delituoso pode ser considerado não mais lesivo graças à anistia, deixando de incidir a resposta penal. O fato criminoso, sucedido em dadas condições, quando objeto de anistia, torna-se indiferente perante a lei penal.

A qualificação como delito desfaz-se e, de conseguinte, suprime-se o processo ou as consequências penais, em caso de já aplicadas. Como medida excepcional, que suspende a aplicação da norma penal, cabe perquirir quando se justifica a anistia.

São valores protegidos pelos artigos 359-L e 359-M do Código Penal o livre exercício dos Poderes e a incolumidade do governo legítimo, fruto do pluralismo político e da escolha do governante por via do voto direto, secreto e universal, sendo vedada a cassação de direitos políticos, a serem perdidos apenas em razão de condenação criminal.

Resta, então, ver em que situações a tutela destes valores protegidos pelo Direito Penal poderia ser excepcionalmente suspensa. São três hipóteses:

1) Considerar que, na forma praticada, os comportamentos delituosos deixaram de ser tidos como lesivos ao bem jurídico “Estado de Direito” e devem ficar isentos de repressão penal;

2) Ser medida de transição, na passagem de um regime autoritário para o Estado de Direito; e

3) Ser providência que o titular do Poder legítimo toma diante dos antagonismos existentes, para promover uma pacificação.

Nenhuma das três hipóteses, todavia, se apresenta a justificar o levantamento da resposta penal ao ataque ao Estado de Direito promovido por Bolsonaro e sua trupe.

As tentativas de golpe de Estado e de impedir o exercício dos Poderes permanecem como ferida na consciência da sociedade, não havendo esgarçamento da importância da democracia a ser reafirmada por meio da resposta penal. A desmoralização contínua do processo eleitoral foi o pano de fundo indutor da violência dos acólitos no seu avanço sobre a sede dos Três Poderes. Esta forte imagem de destruição ainda perdura na mente dos brasileiros.

A segunda hipótese corresponde à anistia de agosto de 1979, proposta pelo presidente Figueiredo, que, mesmo em projeto deficiente, afirmava: “A anistia reabre o campo da ação política, enseja o reencontro, reúne e congrega a construção do futuro”.

Estávamos em meio ao processo de distensão, o gradualismo, como se pode constatar da Lei de Segurança Nacional de 1983, em cujo artigo 16 constava como crime: “Integrar ou manter associação, partido (...) que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito”. Reconhecia-se, portanto, que do regime vigente passava-se ao Estado de Direito. Era um momento de transição para o Estado de Direito.

Em fins de 2022 não se estava em transição política, apenas dando-se continuidade à democracia, malgrado as diatribes de Bolsonaro contra o sistema eleitoral.

A terceira hipótese diz respeito a ser a anistia uma ferramenta para apaziguamento. Os atuais defensores da anistia não procuram pacificação, mas impunidade. Realizam campanha agressiva, a demonstrar a total falta de obediência ao jogo democrático, de que é exemplo o motim promovido pelos parlamentares bolsonaristas que ocuparam pela força a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

Os deputados não exerceram o legítimo expediente da obstrução, próprio do jogo parlamentar, mas impediram com violência que a Câmara dos Deputados viesse a exercer suas funções, em conduta similar à que é objeto do pedido de anistia.

A campanha em curso pela anistia, cujo único beneficiário que interessa é Bolsonaro, incluiu em sua estratégia o ataque ao nosso país pela potência norte-americana. Quando passa-se a aviltar nossa soberania para tentar obter a anistia, não se pretende pacificação.

Os crimes contra o Estado de Direito são imprescritíveis, a indicar que não basta o passar do tempo para se extinguir a punibilidade. Como medida excepcional, é preciso mais, ou seja, a ocorrência das hipóteses acima mencionadas, o que não sucede. Com essa anistia, apenas corre-se o risco de animar a preparação de novo golpe.

 

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