sábado, 6 de setembro de 2025

Democracia como legado. Por Oscar Vilhena Vieira

Folha de S. Paulo

Projeto de anistia impõe à direita a obrigação de escolher em que campo pretende ficar

A proposta de anistia que passou a circular na Câmara do Deputados nesta semana não apenas fere as cláusulas pétreas da Constituição —que protegem o Estado democrático de Direito— como impõe à classe política brasileira, em especial à direita, escolher entre as regras do jogo democrático ou aqueles que deliberadamente as vandalizaram.

Não se trata de uma proposta voltada a "pacificar" o país ou a corrigir "eventuais excessos" do Supremo Tribunal Federal. Nada disso. Seu objetivo explícito é assegurar a impunidade de todos aqueles que atentaram contra a democracia nos últimos anos, conferindo uma verdadeira licença para que grupos extremistas se sintam livres para continuar conspirando contra a ordem constitucional no futuro.

Implicitamente, no entanto, a proposta de anistia ampla, geral e irrestrita traça uma linha divisória entre os que têm compromisso com as instituições democráticas e aqueles que não têm qualquer constrangimento em rasgar as regras do jogo toda vez que forem derrotados ou contrariados.

O projeto de anistia do bolsonarismo está impondo à direita brasileira a obrigação de escolher em que campo pretende ficar. Como salienta Sergio Fausto, em arguto artigo em O Estado de S. Paulo, esse é o dilema fundamental colocado para a direita. A decisão dos líderes da direita terá fortes repercussões não apenas para definir a sua natureza como sobre a própria sobrevivência de nossa democracia.

Se aprovada, a nova anistia terá um efeito muito mais amplo que o indulto concedido por Donald Trump a seus correligionários que vandalizaram o Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2021, com as consequências que estamos testemunhando.

De acordo com o texto em circulação, ficam anistiados todos aqueles que foram condenados ou que vierem a ser condenados por quaisquer atos contra as instituições democráticas cometidos entre 14 de março de 2019 e a entrada em vigor da referida lei. O projeto é quase uma confissão dos vários tipos de crimes cometidos pelos radicais. Até "milícia privada" entrou na anistia.

Como acertadamente salientou Vera Magalhães, trata-se de um "liberou geral" que deixará a democracia brasileira indefesa contra os seus inimigos.

Como já me manifestei neste espaço, a Constituição de 1988, em reação ao nosso legado autoritário, ondas populistas e sucessivas tentativas de ruptura constitucional, incorporou uma série de mecanismos de autodefesa de nossa democracia voltados a impedir que grupos oportunistas se beneficiem das liberdades democráticas com a finalidade de destruí-las.

Entre esses mecanismos, a Constituição de 1988 estabeleceu que um conjunto de valores estruturantes e habilitadores da democracia constitucional, como a separação entre os Poderes, o voto, a federação, além dos direitos fundamentais, não podem ser abolidos, sequer por decisão do poder constituinte reformador.

Como "não poderão ser objeto de deliberação as propostas de emenda tendentes a abolir" essas pedras fundamentais de nosso regime (artigo 60, parágrafo 4º.), o que se dirá de um mero projeto de lei ordinária que propõe anistiar aqueles que empreenderam esforços para abolir nosso Estado democrático de Direito.

Cumpre à nossa geração se esforçar para que as futuras gerações de brasileiras e brasileiros possam escolher democraticamente o seu destino.

Dessa forma, não podemos ceder ao canto das sereias de conceder anistia àqueles que conspiraram e depredaram nossas instituições democráticas, sob o risco de levá-las à destruição.

Esse será, como cidadãos, nosso maior legado.

 

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