Folha de S. Paulo
Projeto de anistia impõe à direita a
obrigação de escolher em que campo pretende ficar
A proposta de anistia que passou a circular
na Câmara do Deputados nesta semana não apenas fere as cláusulas pétreas
da Constituição —que
protegem o Estado democrático de Direito— como impõe à classe política
brasileira, em especial à direita, escolher entre as regras do jogo democrático
ou aqueles que deliberadamente as vandalizaram.
Não se trata de uma proposta voltada a
"pacificar" o país ou a corrigir "eventuais excessos" do
Supremo Tribunal Federal. Nada disso. Seu objetivo explícito é assegurar a
impunidade de todos aqueles que atentaram contra a democracia nos últimos anos,
conferindo uma verdadeira licença para que grupos extremistas se sintam livres
para continuar conspirando contra a ordem constitucional no futuro.
Implicitamente, no entanto, a proposta de anistia ampla, geral e irrestrita traça uma linha divisória entre os que têm compromisso com as instituições democráticas e aqueles que não têm qualquer constrangimento em rasgar as regras do jogo toda vez que forem derrotados ou contrariados.
O projeto de anistia do bolsonarismo está
impondo à direita brasileira a obrigação de escolher em que campo pretende
ficar. Como salienta Sergio Fausto, em arguto artigo em O Estado de S. Paulo,
esse é o dilema fundamental colocado para a direita. A decisão dos líderes da
direita terá fortes repercussões não apenas para definir a sua natureza como
sobre a própria sobrevivência de nossa democracia.
Se aprovada, a nova anistia terá um efeito
muito mais amplo que o indulto concedido por Donald Trump a seus
correligionários que vandalizaram o Congresso norte-americano em 6 de janeiro
de 2021, com as consequências que estamos testemunhando.
De acordo com o texto em circulação, ficam
anistiados todos aqueles que foram condenados ou que vierem a ser condenados
por quaisquer atos contra as instituições democráticas cometidos entre 14 de
março de 2019 e a entrada em vigor da referida lei. O projeto é quase uma confissão
dos vários tipos de crimes cometidos pelos radicais. Até "milícia
privada" entrou na anistia.
Como acertadamente salientou Vera Magalhães,
trata-se de um "liberou geral" que deixará a democracia brasileira
indefesa contra os seus inimigos.
Como já me manifestei neste espaço, a
Constituição de 1988, em reação ao nosso legado autoritário, ondas populistas e
sucessivas tentativas de ruptura constitucional, incorporou uma série de
mecanismos de autodefesa de nossa democracia voltados a impedir que grupos
oportunistas se beneficiem das liberdades democráticas com a finalidade de
destruí-las.
Entre esses mecanismos, a Constituição de
1988 estabeleceu que um conjunto de valores estruturantes e habilitadores da
democracia constitucional, como a separação entre os Poderes, o voto, a
federação, além dos direitos fundamentais, não podem ser abolidos, sequer por
decisão do poder constituinte reformador.
Como "não poderão ser objeto de
deliberação as propostas de emenda tendentes a abolir" essas pedras fundamentais
de nosso regime (artigo 60, parágrafo 4º.), o que se dirá de um mero projeto de
lei ordinária que propõe anistiar aqueles que empreenderam esforços para abolir
nosso Estado democrático de Direito.
Cumpre à nossa geração se esforçar para que
as futuras gerações de brasileiras e brasileiros possam escolher
democraticamente o seu destino.
Dessa forma, não podemos ceder ao canto das
sereias de conceder anistia àqueles que conspiraram e depredaram nossas
instituições democráticas, sob o risco de levá-las à destruição.
Esse será, como cidadãos, nosso maior legado.
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