CartaCapital
O STF tem o dever de fechar as portas ao
golpismo que assola o País desde os primórdios do regime republicano
O julgamento de Jair Bolsonaro e seus comparsas sinaliza para o fim da impunidade ao golpismo no Brasil. Entre as décadas de 1960 e 1980, a América do Sul foi marcada por ditaduras, várias delas patrocinadas pelos EUA no contexto da Guerra Fria. No Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Argentina, os militares implantaram regimes autoritários que demonstravam uma articulação regional em torno de um modelo comum: repressão interna, violência política, eliminação de opositores e o combate a movimentos ligados aos interesses populares e à justiça social.
As ditaduras do Cone Sul se notabilizaram
pela extrema violência. No Chile, mais de 3 mil opositores políticos foram
assassinados, cerca de 40 mil sofreram medidas repressivas e, aproximadamente,
200 mil foram forçados ao exílio. Na Argentina, a repressão foi ainda mais
brutal: os militares assassinaram cerca de 30 mil indivíduos. No Brasil, a
Comissão Nacional da Verdade reconheceu 434 mortos e desaparecidos, além de
estimar que ao menos 50 mil cidadãos foram vítimas de algum tipo de perseguição
política. Há, porém, quem considere que esses números estejam subestimados.
Nos períodos pós-ditadura, os países
sul-americanos seguiram caminhos distintos na responsabilização dos agentes do
Estado que cometeram graves violações aos direitos humanos. Na Argentina, mais
de 1,2 mil militares e civis foram condenados, muitos deles à prisão perpétua,
incluindo integrantes da cúpula dos regimes ditatoriais. No Brasil, os
condenados não chegam a cinco. Considerando os recursos judiciais, não há, a
rigor, nenhum com sentença de prisão definitiva. A Lei
da Anistia impediu que os responsáveis fossem punidos – um erro
histórico, pois anistia não é pacificação, é estímulo ao crime. A impunidade
mantém vivas as ameaças golpistas, como ficou evidente na conspiração liderada
por Bolsonaro.
O julgamento do chamado “núcleo
crucial” da intentona bolsonarista – a incluir o ex-presidente,
generais e ministros – representa uma oportunidade histórica para o Brasil
fechar as portas ao golpismo e estabelecer uma nova doutrina militar: apartada
da política, orientada pelo profissionalismo e subordinada ao poder civil. Até
porque, em uma República, é o povo que escolhe seus representantes nas urnas. A
atividade militar deve ser compreendida como um serviço à nação e à sociedade.
Os fardados não devem ser nem desprezados nem agraciados com privilégios, muito
menos protegidos por mecanismos de impunidade.
Há provas robustas de que houve o
planejamento de um golpe militar com o objetivo de manter Jair Bolsonaro no
poder e impedir a posse dos eleitos, Lula e Alckmin. O plano também tinha, como
um dos seus principais alvos, o Judiciário – especialmente o Supremo Tribunal
Federal e o Tribunal Superior Eleitoral –, pois a anulação de seu
funcionamento independente removeria os mecanismos de contenção institucional
ao golpe.
No contexto do julgamento, o que está
demonstrado é que o golpismo continua em andamento. Os bolsonaristas não
aceitam submeter-se às instituições democráticas. Agem para coagir o STF ao
poder arbitrário do governo Trump. Há poucos dias, tomaram de assalto a Mesa
Diretora da Câmara dos Deputados, visando impedir o funcionamento da
democracia. Foi uma continuidade do 8 de Janeiro. Querem impor uma anistia a
qualquer custo, evadindo-se das responsabilidades pelos crimes que cometeram.
Com esse cenário de pressões e tensões, os
julgadores do STF precisam ter o equilíbrio, a responsabilidade e a serenidade
para produzir um resultado justo. Em caso de condenação, as penas não podem ser
tão escassas que pareçam impunidade. E não podem ser tão excessivas que pareçam
vingança. Precisam ser justas, pois só assim criarão as condições para conduzir
o País, as opiniões e os grupos políticos à aceitação dos resultados.
O Brasil precisa aprender que o conflito é
inerente à democracia, mas deve ocorrer dentro de critérios e limites
compatíveis com o regime democrático. Os deputados precisam compreender que um
Judiciário independente – guardião da Constituição e garantidor da
constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo – é condição
fundamental para a existência de uma república democrática. Essa é uma ordem
política inegociável para aqueles que reconhecem que o processo civilizatório
das sociedades caminha no sentido do universalismo dos direitos, da
liberdade, da igualdade, da justiça e da preservação das condições de vida no
planeta. •
Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital,
em 10 de setembro de 2025.
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