CartaCapital
A peça final do procurador-geral Paulo Gonet
demole os sofríveis argumentos que negam a tentativa de golpe
Epaminondas Gomes de Oliveira era um líder camponês no Maranhão que lutava por educação e saúde até ser preso, torturado e morto, em 1971, pela ditadura. Seu caso foi o primeiro a ser esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade. A partir de papéis do Arquivo Nacional, o delegado da Polícia Federal Daniel Lerner, então na comissão, descobriu os restos mortais de Oliveira em um cemitério de Brasília. A família os recebeu e os enterrou em agosto de 2014. A certidão de óbito foi alterada para constar “tortura” como causa da morte. “O País vive um momento histórico, de um julgamento histórico contra nossa tradição golpista”, afirmou Lerner ao lançar o livro Epaminondas na noite de 3 de setembro, na capital brasileira. “Todos os golpes no Brasil tiveram participação das Forças Armadas.”
O golpe de Jair
Bolsonaro contra a derrota nas urnas em 2022 só não vingou por falta
de apoio suficiente no alto-comando da caserna, segundo o procurador-geral da
República, Paulo Gonet, no primeiro dia do julgamento. Com aquela voz
monocórdica, Gonet foi singelamente demolidor, ao comentar não ser “preciso
esforço intelectual extraordinário” para reconhecer que, quando o presidente e
o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para debater um decreto que
anularia a eleição, o “golpe já está em curso”. Golpe para o qual Bolsonaro e
mais sete réus, cinco dos quais fardados, da mesma ação penal haviam preparado
o terreno por mais de um ano com lorotas sobre trapaça eleitoral e fraude nas
urnas eletrônicas. A insurreição de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, a Festa
da Selma, foi o “ápice” da trama, embora não fizesse parte do roteiro original,
de acordo com o procurador-geral.
Na esperança de salvar os clientes, ou de ao
menos minimizar as penas, alguns advogados reprovaram (oh, ironia…) a
insurreição e elogiaram o Supremo Tribunal Federal do púlpito da Corte, na
última manifestação antes do veredicto. Foi o que fizeram as defesas do
almirante Almir Garnier, chefe da Marinha no governo passado, de Anderson
Torres, ex-ministro da Justiça, e do general Walter Braga Netto, candidato a
vice na chapa de Bolsonaro. “Vou prestar solidariedade a essa Corte pelos
ataques que tem recebido”, disse José Luis Oliveira Lima, que trabalha para o
general, enquanto olhava para o juiz Alexandre de Moraes, alvo da cruzada
bolsonarista. Lima foi advogado do petista José Dirceu no “Mensalão” e
comparou: aquele caso “teve cobertura frenética” da mídia, mas não provocou a
mesma onda de ataques ao Supremo.
Os comparsas de Bolsonaro não hesitaram em
jogá-lo aos leões
O julgamento de agora também tem
acompanhamento midiático febril. Credenciaram-se para cobri-lo 501 jornalistas,
inclusive estrangeiros. A sala de audiência tem 80 cadeiras para a imprensa,
senta quem chegar antes. Para entrar, os repórteres precisam usar pulseiras
coloridas de identificação e passar por dois detectores de metal. O Supremo
cercou-se de cuidados. Não sem razão: foi depredado com fúria pelos
bolsonaristas em 8 de janeiro de 2023, até mais que o Congresso e o Palácio do
Planalto, e atacado por um homem-bomba em novembro do ano passado. No entorno
da Corte, há grades para todo lado. Um drone e cães farejadores estão a serviço
da polícia da Corte. O efetivo foi reforçado com homens de mais três tribunais
sediados em Brasília.
O julgamento despertou interesse também da
população em geral e de advogados e estudantes de Direito, em particular. O
Supremo recebeu 3.357 pedidos de interessados em assistir “ao vivo”. Aceitou só
1,2 mil, por falta de espaço. Os contemplados não estarão no tribunal ao mesmo
tempo, nem ficam na sala de audiências, mas em outro andar, e acompanham por um
telão. Foram divididos em grupos de 150 por sessão. Já houve três sessões e
estão programadas mais cinco a partir de 9 de setembro. Quando a próxima
começar, será revelado o voto
de Moraes, o relator, e a sentença na cabeça dos demais quatro integrantes
da Primeira Turma: Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux.
Com uma caneta Bic azul, Fux foi quem mais
fez anotações nos dois primeiros dias de julgamento. Nessas sessões,
falaram Gonet,
na condição de acusador, e os advogados dos réus, num total de dez horas e dez
minutos. Por certas posições em outros casos do 8 de Janeiro, Fux é visto como
a tábua de salvação dos réus. Ele e os colegas de Corte pouco se pronunciaram
nos dois primeiros dias. Após o discurso de Paulo Garcia Cinta, advogado de
Alexandre Ramagem, o ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Fux disse
que o fato de ter sido monitorado pela “Abin paralela” não interfere em sua
imparcialidade. Disse ainda ter trocado a carreira de promotor pela de juiz,
pois prefere decidir a opinar, comentário feito após ter tido o currículo
descrito por Demóstenes Torres, defensor de Almir Garnier.
Demóstenes gastou 20 minutos a bajular os
juízes da Primeira Turma, depois falou bastante de si próprio e, quando
faltavam 13 minutos para o fim da uma hora a que tinha direito, reclamou de
tempo exíguo. Fux perguntou aos advogados do delator Mauro Cid se os vários
depoimentos do cliente tinham sido para complementar informações. A defesa de
Bolsonaro alega que o tenente-coronel mentiu e foi coagido pela Polícia
Federal. Buscam, dessa maneira, anular a delação. Na época em que os acusados
foram convertidos em réus, em maio, Fux havia dito que iria ao interrogatório
de Cid no Supremo, o que realmente fez, para conferir a sinceridade do delator.
Cezar Bittencourt, um dos advogados do ex-ajudante de ordens, definiu Fux
como “amoroso, atraente”, ao discursar. Faz sentido a bajulação. O cliente, que
acaba de pedir baixa do Exército, corre o risco de ir em cana, apesar da
delação.
“Juiz inquisidor”, afirmou um dos advogados
de Bolsonaro sobre Moraes
Dino foi o juiz que fez mais intervenções no
julgamento. Quis entender a quem um advogado de Bolsonaro se referia como
“ministro do Exército”, cargo inexistente. Quis saber o nome de um ex-juiz do
STF (era Marco Aurélio Mello) que havia dito que a Corte fazia oposição a
Bolsonaro, citação feita pela defesa do general Augusto Heleno. Perguntou aos
advogados de Anderson Torres sobre a operação da Polícia Rodoviária Federal no
Nordeste no dia da eleição. Agredido verbalmente por uma enfermeira do Paraná
no voo do Maranhão a Brasília na véspera do julgamento, o bem-humorado
magistrado garantiu dois momentos cômicos. “Não aceito menos que isso”,
afirmou, após Bitencourt chamar Fux de “amoroso, atraente”. E interrompeu Andrew
Fernandes Farias, defensor do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira,
quando ouviu que este falaria da sogra. Dino espantou-se. “Às vezes, as
palavras são como um punhal… Machucam, doem”, costuma dizer dona Zilda,
segundo o genro. Moraes perdeu a paciência pouco depois. Bufou ostensivamente,
a olhar os colegas juízes, quando Farias declarou que havia meditado sobre o
caso diante da pintura O
Semeador, de Van Gogh.
O celular de Farias tocou enquanto o
causídico estava na tribuna. A sala do julgamento tem dois telões na lateral da
mesa dos juízes com informações sobre o que é proibido e recomendado. Não se
pode falar ao telefone e este deve ficar no modo silencioso, do contrário a
polícia está autorizada a botar o infrator para fora. Quando Farias terminou a
exposição, Cármen Lúcia perguntou-lhe: quando disse que o cliente tinha
tentado demover o
então presidente Bolsonaro, era demover do quê? Resposta: “Demover de qualquer
medida de exceção”. Ou seja, o réu admite a trama do golpe. Não foi o único a
jogar Bolsonaro aos leões. O advogado Mateus Mayer Milanez, de Augusto Heleno,
disse que o general havia se afastado do então presidente após o capitão
filiar-se ao PL. Heleno era contra abraçar o dito “Centrão” e dali em diante
teria perdido influência. Curioso: não apitaria mais nada, mas havia uma
papelada a colocá-lo como chefe da junta do governo do golpe. Milanez foi o
único a confrontar Moraes. “Juiz inquisidor”, tascou.
Entre os réus, somente o general Nogueira de
Oliveira foi ao STF ver o julgamento, e só no primeiro dia. Havia jogado
pingue-pongue com o neto antes de encarar a hora fatal. Alguns deputados
governistas compareceram, casos de Lindbergh Farias e Rogério Correia, do PT,
Jandira Feghali e Orlando Silva, do PCdoB, e Fernanda Melchiona e Henrique
Vieira, do PSOL. Lindbergh é um dos responsáveis pela decisão de Moraes de
aumentar a vigilância sobre Bolsonaro na prisão domiciliar. A residência do
capitão tem polícia na porta e nos jardins internos, a fim de evitar risco de
fuga. Quem chega de carro para visitá-lo tem o porta-malas revistado. Aconteceu
com o deputado Arthur Lira, ex-presidente da Câmara, e a senadora Damares
Alves, na véspera do início do julgamento. Lira é da turma pró-anistia e foi em
seu gabinete que o pacto entre a extrema-direita e setores do “Centrão” foi
selado para encerrar o motim no Congresso, após Bolsonaro ser trancado pelo
Supremo em casa.
Na porta da casa do capitão em Brasília e na
frente do condomínio de luxo onde ele tem casa no Rio de Janeiro, houve nos
últimos dias manifestações a favor da condenação. Para evitar o pior, o
ex-presidente gastou uma nota. Contratou três advogados por 11,8 milhões de
reais. Dois deles, Celso Vilardi e Paulo Amador Bueno, revezaram-se da tribuna
durante 59 minutos. A dupla atacou a delação e a credibilidade de Cid, disse
que era impossível conhecer a íntegra do processo antes do julgamento, devido à
enorme quantidade de informações e documentos obtidos pela Polícia Federal.
Mais: que o cliente não atentou contra o governo eleito nem contra a
democracia, do contrário teria trocado os chefes das Forças Armadas antes de
deixar o poder, por exemplo. Apesar de pedirem a absolvição do réu, os
advogados não se iludem. Acham que uma pena de 30 anos não seria razoável.
No Dia da Independência, bolsonaristas e
anti-bolsonaristas prometem ir às ruas, a fim de tentar de influenciar o
veredicto. O presidente Lula irá também, para o tradicional desfile militar.
Uma das mensagens do governo será a de “Brasil soberano”. Resta saber quais
serão os próximos passos de Donald Trump contra essa “soberania”. •
Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital,
em 10 de setembro de 2025.
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