quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Um sistema de justiça que só pensa naquilo, por Conrado Hübner Mendes

Folha de S. Paulo

Supersalários são manifestação gritante de corrupção institucional

Gastamos pelo menos R$ 20 bilhões em remuneração ilegal no último ano

Um magistocrata de estirpe não pensa em crescer como pessoa. Pensa em crescer como pessoa remunerada, abusadamente remunerada. Pertence ao gênero dos que vieram ao mundo a negócios, e de uma espécie particular: explora a função de operador da justiça para se locupletar à margem da lei. Está num lugar mais seguro para torcer a legalidade em benefício próprio.

O extrativismo magistocrático é praticado por grileiros do orçamento público, os maiores grileiros do Estado brasileiro. A predação de recursos pela cúpula do serviço público fabrica instituições corruptas. Não é o preço inevitável do estado de direito, é o preço de um estado de direito sequestrado por uma minúscula fração de agentes do Estado.

Hoje foi lançado o relatório "Benchmark Internacional Sobre Teto Salarial no Setor Público", produzido por República.org e Movimento Pessoas à Frente, de autoria de Sérgio Guedes-Reis. O texto traz dados sempre chocantes, nunca surpreendentes.

A pesquisa analisou amostra de dados de remuneração de 4 milhões de servidores ativos e inativos no Brasil. Gastamos R$ 20 bilhões em remuneração acima do teto constitucional de R$ 46 mil entre agosto de 2024 e junho de 2025. O Estado brasileiro é líder por larga margem de ranking internacional de supersalários que inclui Alemanha, França, Estados Unidos, Itália, Reino Unido, México, Argentina, Colômbia etc.

Entre 4 milhões de servidores, 53 mil recebem acima do teto. Significa que pouco mais de 1% dos servidores públicos recebem remunerações ilegais legalizadas pela malandragem do legalismo magistocrático. Recebem acima do teto 21 mil juízes, o grupo mais numeroso (R$ 11 bilhões); também 10 mil membros do Ministério Público (R$ 3 bilhões) e 12 mil no Executivo Federal (R$ 4 bilhões), 82% nas carreiras de advogados públicos; 11 mil juízes receberam mais de R$ 1 milhão nesse período. O dinheiro gasto com supersalários dessa ínfima parcela corresponde a quase 716 mil vezes a mediana da renda nacional.

O privilégio exorbitante, nu e escancarado não é qualquer privilégio. É privilégio construído, protegido e ampliado nas quatro linhas da grosseira ilegalidade.

A proposta de reforma administrativa tenta enfrentar o descalabro. Conter supersalários fortalece o servidor público, contribui para a autoridade e legitimidade do Estado, não o contrário. Porque serviço público forte não pode ter grileiros do orçamento.

José Murilo de Carvalho emprestou de Aristides Lobo a frase que sintetizava sua decepção com a Proclamação da República em 1889: "o povo assistiu a tudo bestializado". O evento histórico nasceu com esse pecado original da "República que não foi" (livro "Os Bestializados").

A magistocracia vigia de forma violenta e persecutória os muros desse enclave que nunca aceitou a proclamação da República, sempre rejeitou a separação entre o público e o privado, a construção de noção não egoísta de valor a ser perseguido pelo Estado e pela lei. A magistocracia nunca perdeu nessa República que não foi, mas ainda tenta ser. Não será sem o controle dos grileiros.

 

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