Paulo Nogueira/ Jornal Unesp
Agraciado como Personalidade Acadêmica no próximo prêmio Jabuti Acadêmico, José de Souza Martins discute, em entrevista ao Jornal da Unesp, as linhas que orientam sua extensa produção no campo da Sociologia e a persistência da escravidão na sociedade brasileira
No último dia 23 de junho, a
Câmara Brasileira do Livro (CBL) anunciou o sociólogo José de Souza Martins
como Personalidade Acadêmica da segunda edição do Prêmio Jabuti Acadêmico.
Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, Martins é autor de uma vasta e diversificada obra que compreende mais
de 40 livros e capítulos publicados no Brasil e no exterior.
Três desses livros foram
vencedores do prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas: Subúrbio (Editora
Unesp), A Chegada do estranho (Hucitec Editora) e A
aparição do demônio na fábrica (Editora 34). Curador do prêmio Jabuti
Acadêmico e ex-reitor da Unicamp, Marcelo Knobel afirmou que a indicação é “um
reconhecimento justo para quem tanto se dedicou e contribuiu para estudar a
sociedade contemporânea brasileira”.
Seu último livro, publicado
pela Editora Unesp, Capitalismo e Escravidão na Sociedade
Pós-Escravista, analisa o fenômeno da servidão contemporânea e sua
importância dentro do sistema de produção capitalista, um tema ao qual o
pesquisador dedicou boa parte de sua trajetória profissional. Durante 12 anos
(1996 a 2007), Martins atuou como representante das Américas na Junta de
Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de
Escravidão. Em 2002 coordenou voluntariamente uma comissão da Secretaria de
Direitos Humanos do Ministério da Justiça que elaborou o Plano Nacional de
Erradicação do Trabalho Infantil e Escravo.
Nesta entrevista para o Jornal da Unesp, Martins discute as linhas de pesquisa que têm orientado sua extensa produção acadêmica, que ele descreve como “conjunto complexo de linhas conexas de investigação sociológica”, além de analisar algumas das causas da persistência da escravidão na sociedade brasileira.
O senhor recebeu o prêmio Personalidade Acadêmica no Prêmio Jabuti Acadêmico 2025 pelo conjunto da sua obra. Seus livros abordam uma diversidade grande de temas, como questões agrárias, imigração italiana, linchamentos no Brasil, escravidão moderna, história de São Paulo, entre outros. Existe um eixo principal que orientou esse seu percurso intelectual?
José de Souza Martins: Existe
um eixo, mas não apenas um eixo. Um eixo principal que vai do meu livro A
Imigração e a Crise do Brasil Agrário, que é sobre a imigração italiana,
mas que na verdade discute a formação do capitalismo no Brasil.
O capitalismo no Brasil não
é uma cópia do capitalismo de outros países. Fernando Henrique Cardoso, que foi
meu professor, já havia chamado a atenção para isso na tese de doutorado
dele Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, e eu continuei
investigando o tema. Contudo, à medida que a pesquisa andava, eu notei que
haviam temas correlacionados mais abertos, que pediam uma investigação
adicional. Então eu fui ampliando a pesquisa até esse livro mais recente, que é
o Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista, publicado
pela Editora Unesp, em que praticamente eu fecho essa linha de análise da
realidade brasileira.
Durante esses meus estudos
sempre surgem temas paralelos. Por exemplo, eu estava no campo durante pesquisa
na região amazônica e começaram a surgir informações paralelas à pesquisa sobre
linchamentos na região. Houve um episódio famoso em Matupá (MT), nos anos 90,
quando dois ladrões assaltaram um banco numa pequena localidade do estado e
foram bestialmente linchados e queimados vivos pela população local, tudo isso
transmitido pela televisão. Então eu comecei uma linha adicional de pesquisa
sobre linchamentos que durou 20 anos e resultou no meu livro Linchamentos:
A justiça popular no Brasil.
Ou seja, são temas
correlatos, eles não estão separados. Ao mesmo tempo, eu desenvolvi uma linha
de trabalho, também paralela, sobre Francisca Julia da Silva, uma grande
poetisa paulista, que se matou em 1920. Apesar de ser uma poetisa conservadora,
ela era uma romântica, e ainda assim acabou se tornando uma espécie de musa dos
modernistas. Este é o tipo de contradição que me interessa. Minhas pesquisas
todas estão baseadas nessas contradições, seja em que plano for. Essa é minha
tese: o Brasil é uma sociedade do avesso. Isso aparece em alguns autores,
como Guimarães Rosa e Walnice Galvão, e aparece também nos movimentos sociais.
Minha obra é um conjunto complexo de linhas conexas de investigação sociológica
e de explicação do que é o Brasil.
O que você quer dizer com o
Brasil, um país do avesso?
José de Souza Martins: A
dinâmica do Brasil é uma dinâmica oculta. Não é o que sai no jornal. Não é o
que sai nas análises políticas. Nós estamos de cabeça para baixo. Tudo funciona
do avesso. Nessa dinâmica, existe um protagonismo histórico das populações
simples, dos desvalidos, dos marginalizados, dos excluídos. Eles fazem história
indiretamente. Um dos meus livros, A sociabilidade do Homem Simples,
é sobre isso. A Guerra de Canudos foi marcada por esse protagonismo do homem
simples e a Guerra do Contestado também. Esse inclusive é o tema do meu próximo
livro, que está quase pronto, pela Editora Unesp.
Nós não nos explicamos pelo
modelo europeu de história. Nós somos a anti-história. Nós somos a margem do
mundo. Então nós nunca temos uma consciência política verdadeira, nunca sabemos
exatamente o que está acontecendo, mas achamos que sabemos. Somos um país
anômalo e anômico, ou seja, aquilo que funciona com regras invertidas. Essa
realidade que nós estamos vivendo hoje no Brasil atualmente é escandalosamente
isso. O avesso marginalizado não protagoniza as decisões da história do país. É
claro que para poder entender isso que eu estou tentando dizer tem que ler os
livros.
O seu livro mais recente tem
como título Capitalismo e Escravidão na Sociedade
Pós-Escravista. O que é essa sociedade pós-escravista, exatamente, e por que
a gente vê a perseverança da escravidão no Brasil ainda nos dias de hoje?
José de Souza Martins: Porque
nós não somos um país civilizado. Nós não somos um país capitalista. A gente
acha que é, mas na verdade não somos. Nós temos um capitalismo que nunca chegou
lá, nunca concluiu, nunca se fechou. É um capitalismo periférico,
subdesenvolvido, que usa recursos pré-capitalistas para fazer acumulação de
capital. É um capitalismo que depende, por exemplo, de grilagem de terra e de
especulação imobiliária.
Nós nunca chegamos a ser
aquilo que foi o capitalismo inglês, o capitalismo alemão, o capitalismo
francês, o capitalismo norte-americano. Nós somos sempre um aquém. Nós não
chegamos lá.
Nós temos escravidão até
hoje no Brasil. Há uns três ou quatro anos tinha um sujeito vendendo dois
escravos na feira do Pari, aqui na cidade de São Paulo. Isso é algo atual. Isso
não é uma aberração. É uma contradição. Nós estamos vivendo um período pós-escravista
legal aqui no Brasil. Estamos longe de 1888 e no entanto a escravidão ainda se
reproduz.
E por que o Brasil não se
percebe do avesso? O Brasil se percebe uma grande economia capitalista, tanto
que esses episódios que o senhor citou costumam causar reações de espanto na
sociedade.
José de Souza Martins: Porque
as sociedades contemporâneas dependem de alienação para existirem. Você tem que
acreditar que a sociedade é uma coisa que de fato ela não é. Isso ocorre também
nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França. É a chamada alienação. E nós
temos a nossa alienação. Nós achamos que somos o país mais interessante do
mundo, ou o “país do futuro”, como disse o escritor Stefan Zweig. Nós não somos
o Brasil do futuro, infelizmente. Nós não somos sequer o país do presente. Nós
estamos sempre por chegar lá, mas a gente nunca chega.
O pós-escravismo é isso: um
capitalismo que não depende de criatividade empresarial e industrial. Ele
depende de especulação financeira, da renda da terra, da especulação
imobiliária, depende de grilagem de terra. Atualmente, nós temos no Brasil
quase 30 milhões de hectares de grandes empreendimentos agrários em terras
griladas. Terras que foram obtidas de forma criminosa. No fim das contas, o
crime é que governa o Brasil.
Nós vimos nos últimos dez ou
vinte anos a sociedade brasileira dar uma forte guinada para a direita, se
tornando mais conservadora. Isso foi visto por muitas pessoas como uma surpresa
e surgiram várias tentativas para explicar essa guinada. Uma dessas explicações
é internacionalista, e entende essa mudança como algo que ocorre em outros
lugares do mundo e relacionado às novas tecnologias. Existe uma forma de
entender esse movimento com base na própria história do país?
José de Souza Martins: Sim.
Nós nunca fomos um país de esquerda e a nossa esquerda sempre foi fragmentada,
de classe média. Esse é um grande problema. Nós não temos uma esquerda operária
clássica no Brasil. Existe o movimento de São Bernardo do Campo, mas não temos
uma esquerda consolidada como você tem na Itália ou na França, por exemplo.
Então, quando as contradições se agudizam, como se agudizaram nos últimos vinte
ou trinta anos, é claro que vem para fora esse lado oculto. A ditadura
militar nunca terminou no Brasil, esse é o primeiro detalhe. Essa gente que
está aí, estava conspirando já antes da ditadura militar acabar. Bolsonaro é
filho da ditadura e foi criado para cumprir o papel dele: desmantelar o sistema
democrático no Brasil.
Nós temos uma ilusão que
somos de esquerda. Na verdade, nós queremos ser de esquerda, mas não sabemos
ser de esquerda. Somos um país que temos marxistas que nunca leram a obra de
Karl Marx, que é complicadíssima. O pensamento de Marx é um pensamento científico.
O capitalismo não é para ser contra, é para ser superado. Você constrói
alternativas ao capitalismo em cima da práxis política. A práxis é a
contradição de repetição e inovação.
Os movimentos populares que poderiam ser a expressão de uma inovação na práxis política são subestimados e combatidos, ao invés de serem devidamente interpretados. A universidade tem uma responsabilidade nisso. Ela tem que se ajustar e interpretar a realidade como ela é. Isso depende de método científico. Isso não depende de ideologia política.
Nenhum comentário:
Postar um comentário