O Estado de S. Paulo
Trump nos fez o serviço de mostrar que a parceria com os EUA passa pela presunção dele de indicar seus preferidos na política nacional
É certo que as medidas econômicas e jurídicas
adotadas pelo presidente americano só podem ser caracterizadas como atos de insanidade. Trump ameaça milhares de empregos e tenta submeter nossas leis e
instituições aos seus caprichos. Infelizmente, minha memória recoloca a visão
negra dos tempos de União Nacional dos Estudantes (UNE), defendendo a soberania
frente ao imperialismo escancarado que ajudava a articular o golpe que, logo à
frente, viria.
O desastre sempre tem que levar à reflexão. A
truculência de pretenso imperador de Trump, sem pudor, pode ensinar muitas
coisas ao Brasil. Vejamos algumas delas.
A primeira grande lição está no campo do comércio. Não posso deixar de pontuar que passei toda a minha vida pública apontando a necessidade de fazer política comercial. E fazer política comercial é ir para o corpo a corpo das negociações bilaterais, que são tão importantes para o desenvolvimento quanto os grandes acordos multilaterais.
Quando assumi o Itamaraty, a Apex foi
transferida ao Ministério das Relações Exteriores para fazer o que todas as
nações fazem: articular diplomacia e comércio. Mais do que isso, nossa Câmara
de Comércio Exterior, a Camex, saiu da estrutura ministerial e passou a se
vincular diretamente à Presidência da República, justamente com o objetivo de
conferir prioridade especial à nossa inserção no comércio internacional.
Hoje, as economias brasileira e americana são
mais concorrentes do que complementares. No comércio internacional,
complementariedade significa que os países trocam bens de naturezas distintas,
cada um explorando suas vantagens comparativas (exemplo: Brasil exporta soja e
importa semicondutores). Já a concorrência aparece quando os dois países
exportam e importam produtos similares, disputando mercados e cadeias produtivas
em setores assemelhados.
Essa característica de concorrência acirra a
vulnerabilidade do Brasil: em vez de ter um parceiro que complementa sua
economia, enfrenta um rival que protege agressivamente setores em que ambos
atuam. O desnível entre as duas economias faz da relação com os EUA um mau
negócio hoje e no futuro.
A “ilógica” do tarifaço, bem como de suas
centenas de exceções, explicita que não houve qualquer atenção à natureza da
relação entre as duas economias. O café de que os EUA precisam sofreu com a
tarifa plena. A carne, que os americanos dependem de importações da Austrália,
Canadá e Brasil para suprir o mercado consumidor interno, também sofreu com a
maior das tarifas.
A lição é que o País não pode ser refém de
parcerias exclusivas. A busca de acordos bilaterais, que sempre advoguei, é
justamente a forma de impedir que o Brasil naufrague em crises derivadas da
absoluta insanidade de governantes de outros países. Vale lembrar que a
estabilidade se constrói no âmbito interno com decisões que reduzam os riscos
da economia.
A segunda lição está referida à propriedade
do capital e ao ordenamento jurídico. A evidente tentativa de Trump de
desestabilizar o governo Lula, já atuando no processo eleitoral de 2026,
jogando a favor dos “Bolsonaros” ou de seus “genéricos”, tem suporte justamente
na integração do capital entre Brasil e EUA, que vai muito além da trôpega integração
comercial.
Do ponto de vista da relação entre Estados
soberanos, Trump promove um escracho com suas ações contra as instituições
brasileiras. É fundamental lembrar que a busca pela responsabilização de
violações de direitos humanos deve ocorrer sob as diretrizes do Direito
Internacional e em respeito à soberania dos Estados. Mas Trump usa algo que
desconhece (os direitos humanos) para atacar nossa Justiça.
Medidas como as da Lei Magnitsky podem gerar o efeito contrário ao pretendido, estimulando o isolamento e dificultando o engajamento construtivo para a promoção de justiça e direitos fundamentais. Mas de onde viria este poder?
O poder de Trump contra a nossa soberania
está intrinsecamente vinculado à posição do capital americano no seio de nosso
sistema financeiro. O recente episódio de indicação ao ministro Alexandre de
Moraes de mudança de bandeira de cartão de crédito, mesmo emitido por uma
instituição financeira nacional, para que a sua bandeira (de capital americano)
não aplicasse as sanções derivadas da Lei Magnitsky, explicita um grave
elemento de vulnerabilidade de nossas instituições.
Pior, no momento em que o ministro Flávio
Dino expressa o óbvio, que no Brasil valem as leis brasileiras, as ações dos
bancos brasileiros desabam na bolsa, pelo temor de que eles sofressem sanções
no mercado internacional. Até mesmo sanções aos bancos brasileiros no sistema
internacional de transferências financeiras (Swift) foram aventadas na crise.
Isso para não falar das fake news contra o Banco do Brasil.
O presidente americano nos fez o serviço de mostrar que a parceria com os EUA passa pela presunção de Trump de indicar seus preferidos na política nacional. Cabe ao Brasil decidir se quer ser um país ou uma república de bananas.
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