quinta-feira, 28 de agosto de 2025

As lições do desastre Trump, por José Serra

O Estado de S. Paulo

Trump nos fez o serviço de mostrar que a parceria com os EUA passa pela presunção dele de indicar seus preferidos na política nacional

É certo que as medidas econômicas e jurídicas adotadas pelo presidente americano só podem ser caracterizadas como atos de insanidade. Trump ameaça milhares de empregos e tenta submeter nossas leis e instituições aos seus caprichos. Infelizmente, minha memória recoloca a visão negra dos tempos de União Nacional dos Estudantes (UNE), defendendo a soberania frente ao imperialismo escancarado que ajudava a articular o golpe que, logo à frente, viria.

O desastre sempre tem que levar à reflexão. A truculência de pretenso imperador de Trump, sem pudor, pode ensinar muitas coisas ao Brasil. Vejamos algumas delas.

A primeira grande lição está no campo do comércio. Não posso deixar de pontuar que passei toda a minha vida pública apontando a necessidade de fazer política comercial. E fazer política comercial é ir para o corpo a corpo das negociações bilaterais, que são tão importantes para o desenvolvimento quanto os grandes acordos multilaterais.

Quando assumi o Itamaraty, a Apex foi transferida ao Ministério das Relações Exteriores para fazer o que todas as nações fazem: articular diplomacia e comércio. Mais do que isso, nossa Câmara de Comércio Exterior, a Camex, saiu da estrutura ministerial e passou a se vincular diretamente à Presidência da República, justamente com o objetivo de conferir prioridade especial à nossa inserção no comércio internacional.

Hoje, as economias brasileira e americana são mais concorrentes do que complementares. No comércio internacional, complementariedade significa que os países trocam bens de naturezas distintas, cada um explorando suas vantagens comparativas (exemplo: Brasil exporta soja e importa semicondutores). Já a concorrência aparece quando os dois países exportam e importam produtos similares, disputando mercados e cadeias produtivas em setores assemelhados.

Essa característica de concorrência acirra a vulnerabilidade do Brasil: em vez de ter um parceiro que complementa sua economia, enfrenta um rival que protege agressivamente setores em que ambos atuam. O desnível entre as duas economias faz da relação com os EUA um mau negócio hoje e no futuro.

A “ilógica” do tarifaço, bem como de suas centenas de exceções, explicita que não houve qualquer atenção à natureza da relação entre as duas economias. O café de que os EUA precisam sofreu com a tarifa plena. A carne, que os americanos dependem de importações da Austrália, Canadá e Brasil para suprir o mercado consumidor interno, também sofreu com a maior das tarifas.

A lição é que o País não pode ser refém de parcerias exclusivas. A busca de acordos bilaterais, que sempre advoguei, é justamente a forma de impedir que o Brasil naufrague em crises derivadas da absoluta insanidade de governantes de outros países. Vale lembrar que a estabilidade se constrói no âmbito interno com decisões que reduzam os riscos da economia.

A segunda lição está referida à propriedade do capital e ao ordenamento jurídico. A evidente tentativa de Trump de desestabilizar o governo Lula, já atuando no processo eleitoral de 2026, jogando a favor dos “Bolsonaros” ou de seus “genéricos”, tem suporte justamente na integração do capital entre Brasil e EUA, que vai muito além da trôpega integração comercial.

Do ponto de vista da relação entre Estados soberanos, Trump promove um escracho com suas ações contra as instituições brasileiras. É fundamental lembrar que a busca pela responsabilização de violações de direitos humanos deve ocorrer sob as diretrizes do Direito Internacional e em respeito à soberania dos Estados. Mas Trump usa algo que desconhece (os direitos humanos) para atacar nossa Justiça.

Medidas como as da Lei Magnitsky podem gerar o efeito contrário ao pretendido, estimulando o isolamento e dificultando o engajamento construtivo para a promoção de justiça e direitos fundamentais. Mas de onde viria este poder?

O poder de Trump contra a nossa soberania está intrinsecamente vinculado à posição do capital americano no seio de nosso sistema financeiro. O recente episódio de indicação ao ministro Alexandre de Moraes de mudança de bandeira de cartão de crédito, mesmo emitido por uma instituição financeira nacional, para que a sua bandeira (de capital americano) não aplicasse as sanções derivadas da Lei Magnitsky, explicita um grave elemento de vulnerabilidade de nossas instituições.

Pior, no momento em que o ministro Flávio Dino expressa o óbvio, que no Brasil valem as leis brasileiras, as ações dos bancos brasileiros desabam na bolsa, pelo temor de que eles sofressem sanções no mercado internacional. Até mesmo sanções aos bancos brasileiros no sistema internacional de transferências financeiras (Swift) foram aventadas na crise. Isso para não falar das fake news contra o Banco do Brasil.

O presidente americano nos fez o serviço de mostrar que a parceria com os EUA passa pela presunção de Trump de indicar seus preferidos na política nacional. Cabe ao Brasil decidir se quer ser um país ou uma república de bananas.

Nenhum comentário: