Folha de S. Paulo
Ser pobre é tipo penal não escrito. Esse
crime não tem perdão
Luiz Fux, Flávio Dino e Alexandre de
Moraes mantiveram condenação de duas mulheres por furto de R$
14 e de pedaço de carne. André
Mendonça, Nunes Marques e Dias Toffoli negaram
liberdade a homem que furtou produtos no valor de R$ 62. Dois exemplos recentes
da rejeição do princípio da
insignificância em ações de habeas corpus no STF. Crime sem
violência, sem ameaça, sem prejuízo relevante. Só pobreza.
Há distinção de classes dentro da legalidade.
Mesmo não escrita na letra da lei, aparece nas práticas institucionais. Nas
entreletras da lei, o Estado de Direito discrimina. Dá tratamento diverso e
desvantajoso ao pobre.
A sociedade brasileira se comprometeu, por meio da Constituição de 1988, a reduzir desigualdades, erradicar pobreza e combater causas da pobreza. Mas nossa poderosa vulgata sobre riqueza e pobreza faz inferências moralmente cruéis e empiricamente ignorantes sobre o indivíduo rico e pobre, sobre as qualidades de caráter que explicam riqueza, os defeitos que justificam pobreza. Bloqueou a promessa.
Pobre tem vício, rico tem virtude. Pobre é
dotado de preguiça, burrice e inveja. E doença. E falta de tempo. E falta de
saúde e educação. E vício da má alimentação. E culpa pela insegurança
alimentar. Padece de dependência do Estado, de "vício
em Bolsa Família". E da mania de engravidar. Pobreza é demérito
na "loteria
do nascimento" (vale ler livro de Michael França e Filipi
Nascimento).
Ricos somos dotados de fibra e esforço,
propósito e inteligência. E berço. E herança. E boa escola. E escrivaninha. E
tempo livre. E sono. E alimentação saudável. E rede social não virtual. Geramos
emprego, fazemos a economia crescer. Riqueza é mérito individual.
Esses vícios e virtudes presumidos geram
efeitos jurídicos. Ricos recebemos subsídio, incentivo e isenção. Perdão,
anistia e desoneração. E supersalário. Gozamos da simpatia judicial e policial.
Gozamos da presunção de legalidade. De segurança no espaço privado.
Podemos pagar advocacia da litigância de
má-fé, das nulidades e dos recursos criativos ("quem tem sai na frente", mostrou o sociólogo Marc
Galanter). "Ser
rico não é pecado", confessou João Camargo, "mas não dá
direito à moleza", respondeu
Armínio Fraga.
Pobre paga mais imposto e leva pejotizaçāo.
Sofre abordagem policial com cacetete e tiro. Sofre antipatia judicial e
policial, violência e segregação no espaço público. Sofre presunção de
ilegalidade. Não tem lobby político nem advocatício. No conflito distributivo,
corte de gastos costuma empobrecer o pobre. Ricos tendemos a ter "déficit de compaixão", diz a
psicologia.
Quase ninguém assume autoria desse algoritmo
da cultura nacional. Soa caricato demais, imoral demais. Esse senso comum
compilado sintetiza um código da discriminação, e segue influenciando nossos
reflexos verbais, políticos e jurídicos. Causa não só derrotas distributivas
como desequilíbrios punitivos.
O regime jurídico não escrito da pobreza, em
especial o regime penal e prisional da pobreza, ilumina a depravada contradição
dos recentes atos por anistia da delinquência política serial.
Existe virtude no perdão, a depender de quem
se perdoa, por quais razões. O mesmo país que dá anistias
formais e informais a criminosos públicos, pela via
legislativa, judicial e por obstrução monocrática do STF, não perdoa o crime de
pobreza.
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