quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Pela anistia, outra anistia, por Conrado Hübner Mendes

Folha de S. Paulo

Ser pobre é tipo penal não escrito. Esse crime não tem perdão

Luiz Fux, Flávio Dino e Alexandre de Moraes mantiveram condenação de duas mulheres por furto de R$ 14 e de pedaço de carne. André Mendonça, Nunes Marques e Dias Toffoli negaram liberdade a homem que furtou produtos no valor de R$ 62. Dois exemplos recentes da rejeição do princípio da insignificância em ações de habeas corpus no STF. Crime sem violência, sem ameaça, sem prejuízo relevante. Só pobreza.

Há distinção de classes dentro da legalidade. Mesmo não escrita na letra da lei, aparece nas práticas institucionais. Nas entreletras da lei, o Estado de Direito discrimina. Dá tratamento diverso e desvantajoso ao pobre.

A sociedade brasileira se comprometeu, por meio da Constituição de 1988, a reduzir desigualdades, erradicar pobreza e combater causas da pobreza. Mas nossa poderosa vulgata sobre riqueza e pobreza faz inferências moralmente cruéis e empiricamente ignorantes sobre o indivíduo rico e pobre, sobre as qualidades de caráter que explicam riqueza, os defeitos que justificam pobreza. Bloqueou a promessa.

Pobre tem vício, rico tem virtude. Pobre é dotado de preguiça, burrice e inveja. E doença. E falta de tempo. E falta de saúde e educação. E vício da má alimentação. E culpa pela insegurança alimentar. Padece de dependência do Estado, de "vício em Bolsa Família". E da mania de engravidar. Pobreza é demérito na "loteria do nascimento" (vale ler livro de Michael França e Filipi Nascimento).

Ricos somos dotados de fibra e esforço, propósito e inteligência. E berço. E herança. E boa escola. E escrivaninha. E tempo livre. E sono. E alimentação saudável. E rede social não virtual. Geramos emprego, fazemos a economia crescer. Riqueza é mérito individual.

Esses vícios e virtudes presumidos geram efeitos jurídicos. Ricos recebemos subsídio, incentivo e isenção. Perdão, anistia e desoneração. E supersalário. Gozamos da simpatia judicial e policial. Gozamos da presunção de legalidade. De segurança no espaço privado.

Podemos pagar advocacia da litigância de má-fé, das nulidades e dos recursos criativos ("quem tem sai na frente", mostrou o sociólogo Marc Galanter). "Ser rico não é pecado", confessou João Camargo, "mas não dá direito à moleza", respondeu Armínio Fraga.

Pobre paga mais imposto e leva pejotizaçāo. Sofre abordagem policial com cacetete e tiro. Sofre antipatia judicial e policial, violência e segregação no espaço público. Sofre presunção de ilegalidade. Não tem lobby político nem advocatício. No conflito distributivo, corte de gastos costuma empobrecer o pobre. Ricos tendemos a ter "déficit de compaixão", diz a psicologia.

Quase ninguém assume autoria desse algoritmo da cultura nacional. Soa caricato demais, imoral demais. Esse senso comum compilado sintetiza um código da discriminação, e segue influenciando nossos reflexos verbais, políticos e jurídicos. Causa não só derrotas distributivas como desequilíbrios punitivos.

O regime jurídico não escrito da pobreza, em especial o regime penal e prisional da pobreza, ilumina a depravada contradição dos recentes atos por anistia da delinquência política serial.

Existe virtude no perdão, a depender de quem se perdoa, por quais razões. O mesmo país que dá anistias formais e informais a criminosos públicos, pela via legislativa, judicial e por obstrução monocrática do STF, não perdoa o crime de pobreza.

 

 

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