O Globo
O desenho dos projetos de regulamentação das
big techs falha ao não exigir protocolos de transparência para fiscalização
O projeto de regulação das redes para evitar a adultização de crianças andou rápido, como era necessário. O movimento iniciado pelo influenciador Felca mobilizou o país e foi aprovado ontem. O problema é que talvez não seja suficiente para proteger as crianças dos perigos digitais. Será preciso ter também mecanismos de fiscalização, o que é muito difícil diante da falta de transparência das plataformas. “Estamos criando projetos de lei que têm regras muito interessantes, mas sem mecanismos de fiscalização”, diz Marie Santini, criadora e diretora do NetLab da UFRJ.
Marie Santini é professora da UFRJ e integra
três redes europeias de pesquisa sobre o assunto da regulamentação das big
techs. Ela acompanha as iniciativas globais, e a Europa é a que está mais
avançada na regulamentação. Mas explica que inclusive a lei europeia tem a
mesma dificuldade com a falta de transparência das plataformas. Perguntei se a
aprovação da lei inspirada no influenciador Felca será o suficiente para
proteger nossas crianças e ela disse que “infelizmente não”.
—Falhamos nos desenhos dos projetos de
regulamentação em um ponto fundamental. A Europa regulamentou em 2022, com a
lei de serviços digitais e a lei de marketing, a operação das plataformas.
Entre os pesquisadores no mundo, e nas redes europeias que eu participo, há um
consenso de que legislação falhou quando foi tratada a questão da
transparência. Se o país não obrigar essas empresas a terem determinados
padrões e protocolos de transparência, não há como fiscalizar — explicou.
Em entrevista que me concedeu na GloboNews, a
diretora do NetLab, instituição referência em pesquisa de curadoria
algorítmica, disse que o Brasil ainda tem tempo, mas não muito para estabelecer
uma regulação eficiente sobre as grandes empresas de tecnologia. Essa precisa
ser uma pauta prioritária para o país, diz Marie Santini.
O assunto pode ser visto por diversos
ângulos. Citando três. Primeiro, o risco a que as crianças estão expostas de
serem vítimas de crimes, ou serem atingidas por conteúdos tóxicos. É isso que a
Lei Felca tenta resolver. Segundo, o de os consumidores serem ludibriados,
vítimas de fraudes ou de criminosos na propaganda direcionada. A Lei do
Consumidor funciona no mundo offline, mas não no mundo online, ela diz.
Terceiro, o risco que a democracia corre.
— Existe democracia sem jornalismo? Tem como
a gente avançar na educação se não conseguirmos proteger as crianças? Tem como
proteger o consumidor e a liberdade de escolha se não cuidarmos que esse
ambiente seja seguro e tenha responsabilização para as empresas como existe no
mundo físico? Diante dessas perguntas precisamos sensibilizar a população para
entender que isso passou a ser uma questão fundamental que atinge a vida de
todo mundo.
Marie Santini é uma das organizadoras e uma
das autoras do livro lançado com a Secretaria Nacional do Consumidor sobre o
aspecto de defesa do consumidor. “Atingidos pelas redes sociais: os impactos da
indústria da desinformação nos consumidores brasileiros”.
O livro traz dados e explicações importantes
sobre os perigos para o consumidor. “79% das transações financeiras baseadas em
fraudes e golpes denunciados entre janeiro e junho de 2024 começaram nas
plataformas da Meta, sendo 39% no WhatsApp”, registra o livro.
Na entrevista, Marie Santini citou o exemplo
de uma pessoa com diabetes. Este dado será absorvido pela rede e usado por
alguém que vende medicamentos falsos. No mundo offline, o anúncio seria público
e o Conar poderia agir de acordo com todas as regras de responsabilização. No
mundo digital, a divulgação é direcionada àquele usuário, não é rastreável nem
auditável. Se a pessoa descobrir a posteriori que foi vítima, não consegue
recuperar aquele anúncio que foi dirigido a ela.
O NetLab junto com a Universidade de
Cambridge está desenvolvendo um protocolo, uma espécie de guia de
transparência, que deve ser lançado no fim do ano. Para a especialista, é
urgente exigir mais transparência das empresas de tecnologia. Ela alerta que o
Brasil terá eleições no próximo ano e que, muito provavelmente, o processo será
afetado pela falta de regulamentação. Por isso, é importante ter em mente o que
diz a especialista. Ainda há tempo para agir, mas não por muito tempo.

Nenhum comentário:
Postar um comentário