quinta-feira, 28 de agosto de 2025

‘Deixe a arma, leve o cannoli’, por Julia Duailibi

O Globo

Brasil é o país na América Latina com o maior percentual da população vivendo sob regras impostas por grupos criminosos

‘O crime organizado tem apresentado crescimento preocupante, com facções e redes ilícitas adotando modus operandi de caráter mafioso’, diz uma versão preliminar do projeto antimáfia do Ministério da Justiça, que será enviado ao Congresso nos próximos dias. O texto desenha o que é o “caráter mafioso”: intimidação, corrupção sistêmica, domínio territorial e infiltração no setor público e econômico. Descreve a realidade de parte expressiva do Brasil hoje.

Estudo publicado pela Cambridge University Press e noticiado pelo GLOBO mostra que o Brasil é, de longe, o país na América Latina com o maior percentual da população vivendo sob regras impostas por grupos criminosos. Aqui, um em cada quatro brasileiros está submetido à “governança criminal”. Estamos na frente do México e da Colômbia. Daí a violência ser a principal preocupação do brasileiro, segundo pesquisa da Quaest de agosto. O entorno de Lula sabe que o combate à criminalidade será usado como arma na eleição de 2026. A PEC da Segurança, medidas como o aumento da pena por receptação e, justamente, o pacote antimáfia, todas iniciativas do Ministério da Justiça, são a aposta de defesa.

O projeto antimáfia, porém, sofre fogo amigo — até no nome. Os jornalistas Octavio Guedes e Reynaldo Turollo Jr revelaram que a proposta muda de oito para dez anos de prisão a pena para quem participa de facções; dobra a pena para crimes eleitorais e de lavagem de dinheiro; coloca lideranças em regime de prisão mais severo; e estipula novos critérios para progressão de pena. Medidas vistas por setores do governo como políticas de encarceramento, na contramão do programa da esquerda. Outro ponto de divergência é a agência antimáfia, que opôs integrantes do Ministério Público à Polícia Federal. Lincoln Gakiya, que investiga há 20 anos o PCC e colabora com o texto, defendeu a criação do órgão para coordenar esforços no combate às organizações criminosas. Mas o diretor da PF, Andrei Rodrigues, disse ontem que há “interesses desconhecidos” na proposta.

Em reunião na segunda-feira, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, mandou as equipes se entenderem e avançarem rápido com o projeto (há uma versão desde o começo do ano).

— Nós somos favoráveis ao endurecimento da pena, mas dando racionalidade. Isso é técnico e será tudo mantido no texto — disse ele à coluna, ao explicar que a agência antimáfia caiu porque o ministério já tem órgão com competência semelhante.

Gakiya defende que o projeto seja chamado de antimáfia, porque, para ele, são máfias que atuam aqui:

— E estamos perdendo de goleada.

Lewandowski prefere chamar a proposta de combate às facções:

— No Brasil, não temos essas máfias. Isso é um fenômeno italiano, que age de outra maneira.

Uma das frases mais marcantes de “O poderoso chefão” é quando Clemenza, um dos homens de Corleone, fala para um comparsa, após executarem um integrante do grupo:

— Deixe a arma, leve o cannoli.

Uma passagem que expõe a brutalidade e o cotidiano da Máfia — e lembra a lógica a que estão submetidos mais de 50 milhões de brasileiros.

 

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