O Globo
Fazer o que bem entende sem ser cobrado ou
punido é o sonho de qualquer um. Mas, para deputados, senadores, governadores,
prefeitos, presidente da República, juízes ou ministros do Supremo, é uma causa
que ganha status de prioridade sempre que o ambiente político permite. No Brasil, desde que a
Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma
iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso
dos recursos públicos.
Já tivemos a Emenda Constitucional que impedia a prisão de deputados por crimes que não fossem inafiançáveis, a que garantia a parlamentares acesso irrestrito aos inquéritos sobre eles mesmos, inclusive os protegidos por sigilo, além de um projeto que tornava crime chamar de ladrão políticos condenados por corrupção. Esses não passaram, mas outros viraram lei, como o que liberou advogados de ter de apresentar contratos formais para justificar o recebimento de recursos, ou a emenda que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa e dificultou a punição de autoridades por desvios de conduta.
A ofensiva em curso, o pacote da blindagem,
surgiu no gabinete do ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL),
numa noite tumultuada. Um grupo de deputados invadira o plenário em protesto
contra a prisão domiciliar de Bolsonaro e se recusava a devolver a cadeira do
atual presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB),
a menos que se votasse a anistia aos presos do 8 de Janeiro. Revezavam-se na
invasão, alternando ataques ao STF com
críticas ao “sistema” — que, na narrativa da extrema direita, atua para tirar
Bolsonaro do jogo eleitoral.
Foi quando os líderes reunidos no gabinete de
Lira perceberam a oportunidade de ressuscitar projetos que tentam emplacar há
anos. O primeiro diz que só o próprio Congresso pode autorizar a abertura de
investigação sobre parlamentares, até mesmo inquéritos policiais, e o segundo
tira do STF o poder de julgá-los, mudando o foro dos processos para instâncias
inferiores.
O foco do Centrão é escapar de investigações
sobre desvios de
recursos de emendas. Mas o argumento apresentado no calor da hora
foi que, só quando estiverem livres do Supremo, os deputados e senadores terão
coragem de aprovar a anistia aos presos do 8 de Janeiro (o plano original
serviria para libertar também Jair
Bolsonaro). O líder do PL, Sóstenes
Cavalcante, aceitou o acordo, de que Hugo Motta foi apenas
informado.
A primeira parte do plano, chamada de PEC das
Prerrogativas, virou prioridade na pauta da Câmara ontem. A mudança de foro
ainda não se sabe se vinga, mas não porque os parlamentares tenham desistido, e
sim porque uma ala teme que ficar nas mãos de
juízes de primeira instância possa lhes render ainda mais
problemas.
A consequência das mudanças é óbvia: um
“liberou geral” para todo tipo de desmando, já que abrir inquéritos contra
deputados e senadores ficará praticamente impossível. Também não será surpresa
se o crime organizado despejar todo o dinheiro que puder na campanha de 2026
para colocar seus integrantes no Congresso.
A extrema direita, que se diz pela democracia
e enche a boca para acusar Lula de
bandido, sabe disso, mas finge que não vê. Os deputados de esquerda — que,
diante dos microfones, chamam o pacote de salvo-conduto para os golpistas, mas
nos corredores admitem que podem ajudar a aprová-lo — também sabem.
Para justificar o empenho pela aprovação dos
projetos, Sóstenes repete aos quatro ventos que só tenta proteger os
parlamentares das chantagens dos ministros do Supremo. Mas quem está
chantageando quem, quando e por que, no entanto, ele não diz.
A única forma de conter essa onda é submeter
os parlamentares ao vexame da exposição dos conchavos e à pressão da opinião
pública. Foi assim com as últimas tentativas de passar a boiada da impunidade,
e é por isso que os dois projetos vêm sendo discutidos a portas fechadas e em
segredo. No escurinho do sistema, fronteiras ideológicas deixam de existir, e
as causas por que esses guerreiros da democracia dizem lutar simplesmente
desaparecem.
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