terça-feira, 9 de setembro de 2025

Entrevista | 'Harmonia pode ser sacrificada, independência, não', diz Ayres Britto

 

Por Camila Zarur / Valor Econômico

Ayres Britto diz que pacificação do país virá por respeito à Constituição, não por anistia

Perdoar eventuais condenações do ex-presidente Jair Bolsonaro seria uma “autoanistia”, e não há previsão para isso dentro da Constituição. É o que afirma o ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto. Na visão do ex-magistrado, a tentativa do bolsonarista de reverter os resultados das eleições de 2022 e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva foi feita enquanto o ex-mandatário ainda estava no cargo. “Ou seja, agiu em nome do Estado, em nome do Poder Executivo, de uma pessoa jurídica”, afirma Ayres Britto ao Valor. Nesse sentido, o ex-ministro continua, o Estado não pode perdoar ele próprio - muito menos para anistiar uma tentativa de abolição da democracia.

Indicado por Lula ao STF, Ayres Britto rebate os ataques frequentes à Corte em que ele atuou por quase uma década, de 2003 a 2012. Para o ex-ministro, o Supremo, como guardião maior da Carta Magna, deve ser quem dá a palavra final. E, diante das pressões americanas ao Tribunal e os atritos entre Judiciário, Legislativo e Executivo, é categórico: “A harmonia [entre Poderes] pode ser eventualmente sacrificada, mas a independência não.”

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Como o senhor avalia o julgamento do ex-presidente Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal?

Carlos Ayres Britto: Gosto sempre de bater continência para a lei maior, porque o que interessa não é minha vontade subjetiva, é a vontade objetiva do direito a partir da Constituição. O início de tudo é situar o caso no contexto do direito positivo a partir da Constituição. O que é preciso saber é se o Supremo tem competência para fazer o que tem feito. E eu entendo que sim. Até agora, o STF tem agido com base no artigo da Constituição que o habilita a elaborar seu regimento interno. E nele, o Supremo se assume como condutor do processo que salvaguarda, em última análise, o valor e o princípio da democracia. O processo trata de um conjunto de ações que tiveram, também em última análise, o objetivo de um golpe no Estado de Direito e um atentado violento à própria democracia brasileira. Também é com base no regimento interno da Corte que o Supremo vem processando as coisas. E o faz não plenariamente nem monocraticamente, e sim pela Primeira Turma, composta de cinco ministros e da qual faz parte o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo. O julgamento nas turmas é uma previsão do regimento interno da Corte.

Valor: Uma das críticas que o STF tem sofrido é a competência da Primeira Turma ou do próprio tribunal de julgar o caso. Alegam que há excessos por parte da Corte.

Ayres Britto: O Supremo é o guardião maior da Constituição e fez da democracia o princípio supremo dela própria. O que quero dizer é que a Constituição é a lei das leis. Esse é o ponto de partida de tudo. A Constituição é a única lei que não tem número, porque não foi feita pelo Estado. A Constituição originária, de 5 de outubro de 1988, foi elaborada pela nação brasileira. É preciso entender isso e entender que essa lei suprema fez da democracia substantivamente o princípio supremo. Então, é uma trajetória que vai do supremo ao Supremo: tem apenas uma lei suprema, apenas um princípio supremo e apenas um tribunal supremo. E o Supremo Tribunal Federal, investido nessa competência que lhe defere a Constituição, está cumprindo com seu dever de salvaguardar a democracia brasileira. E a democracia é a condição de possibilidade de todos os outros princípios; da liberdade de imprensa à liberdade de iniciativa, da liberdade de opinião à separação dos poderes. Tudo tem por condição de possibilidade a democracia.

Valor: Outra crítica recorrente é sobre o STF ser quem dá a última palavra e não ter sido eleito pelo povo.

Ayres Britto: A Constituição tem uma lógica própria e irretocável em matéria de estruturação e funcionamento dos três Poderes do Estado. O Judiciário atua no âmbito do devido processo legal. A Constituição exige isso, com as garantias do contraditório e da ampla defesa, e publicizando e fundamentando tecnicamente todas as suas decisões sob pena de nulidade. Isso não é exigido dos outros poderes. E para o Judiciário, a Constituição também exige a notabilidade do saber jurídico. Todos os cuidados foram tomados para que o Judiciário falasse por último. Agora, na escolha de um ministro do Supremo participam os três Poderes. Há dois tipos de legitimidade na Constituição. Há uma legitimidade político-eleitoral. É uma legitimidade que passa pelo Congresso Nacional e pelo presidente da República, que são instâncias eleitas pelo povo e legitimadas pelo voto direto, universal, periódico e secreto. E há a legitimidade pelo conhecimento técnico, pela notabilidade do saber. Esse é outro tipo de legitimidade, mas é igualmente constitucional. E no caso do Supremo, do STJ [Superior Tribunal de Justiça], TSE [Tribunal Superior Eleitoral], ainda existe a acumulação de legitimidades: a científica e a política, porque os nomes passam pelo Congresso e pelo Presidente da República.

O maior princípio da Constituição, pode ser alvo de crime deliberado para varrê-lo do mapa?”

Valor: Nos atos bolsonaristas de domingo, foram feitos duros ataques ao Judiciário por parte da família Bolsonaro e por parte do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O ministro Gilmar Mendes, do STF, rebateu afirmando que não existe “ditadura da toga” nem magistrados agindo como “tiranos”. Como avalia esse embate?

Ayres Britto: Eu reproduzo, subscrevo e compartilho do entendimento do ministro Gilmar. Não existe “ditadura de toga”. O que existe é a obediência à Constituição, que faz do Judiciário a foz do rio decisório do Estado. Ajuda muito o pensamento a gente entender que, à luz da Constituição, a partir do artigo 2º, os três Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. E vem uma de ordem tão lógica quanto cronológica. Por isso a metáfora do rio. O rio decisório do Estado imita a configuração física de um rio normal. Tem nascente, que é o Poder Legislativo; corrente, o Executivo; e foz, o Judiciário. Tudo começa com a lei, é a nascente da vontade formal do Estado, porque ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme diz a Constituição. Mas quando a lei é editada, ela tem que ser executada pelos particulares e pelo Estado. O Poder Executivo é chamado assim por gravitar na órbita da execução das leis, por aplicar as leis com imediatidade, tão logo editadas. Mas é preciso um terceiro Poder, independente, tanto quanto os outros dois, e pertencente ao Estado, tanto quanto aos outros dois, porém exterior aos outros dois e funcionalmente posterior aos outros dois para dizer se o Legislativo legislou mesmo de acordo com a Constituição e se o Executivo cumpriu mesmo com fidedignidade a lei. Esse é o Poder Judiciário. Em qualquer país civilizado é assim.

Valor: O STF sofre uma pressão inédita dos Estados Unidos por conta do julgamento contra Bolsonaro. Isso, inclusive, tem gerado um tensionamento entre os Poderes. Como avalia a forma com que a Corte está lidando com esse cenário?

Ayres Britto: Não faz sentido um país estrangeiro se imiscuir nos assuntos internos do Brasil e atentar a um só tempo contra a independência nacional e a autonomia técnica de cada membro do Poder estatal. O Brasil é independente. E nas relações internacionais do Brasil, o primeiro princípio a respeitar é o da independência e o da autonomia.

Valor: Essa independência também vale entre os três Poderes?

Ayres Britto: Se o Estado do Brasil é independente, os membros dos Poderes são autônomos. Não se abre mão de jeito nenhum da independência, jamais. Os Poderes não podem fazer cortesia com esse chapéu da independência. Por isso que a ordem é independência e harmonia. A harmonia é desejável, mas a independência é imprescindível. A harmonia pode ser eventualmente sacrificada, mas a independência não.

Valor: Como o senhor enxerga a proposta de anistia que está sendo discutida pela classe política?

Ayres Britto: Anistia é perdão, é esquecimento, é deixar de considerar um crime cometido a face da Constituição e das leis. Mas é preciso saber, e o Supremo vai ter que se pronunciar sobre isso, se essa anistia alcança crimes contra a própria democracia e contra o Estado Democrático de Direito, princípio maior da democracia. Vale ressaltar que se a democracia ruir, tudo mais cai. Por isso que o atentado à democracia e a tentativa de ruptura do Estado Democrático já são o crime completo. Você não espera derrubar a democracia ou abolir violentamente o Estado Democrático para a consumação do crime. Porque se ela cair, não vai se apurar nada. A condição de apurar a violência contra a democracia é ela não sucumbir. Do contrário, a nova ordem autoritária não vai deixar investigar nada. Além disso, o Supremo também vai ter que dizer se é uma anistia singela a beneficiar um particular eventual que atenta contra uma lei estatal, ou se é uma anistia que alcança também os próprios agentes estatais. Porque quando alcança os agentes estatais, deixa de ser simplesmente anistia e passa a ser autoanistia. O Estado não é senão seus agentes em ação. Perdoar um agente estatal que agiu formalmente em nome do Estado é anistiar o próprio Estado. O Supremo vai ter que decidir se a Constituição chancela esse tipo de ampliação do instituto jurídico da anistia. Eu entendo que não.

Valor: O agente estatal, nesse caso, é um presidente da República.

Ayres Britto: Seria anistiar um presidente da República que agiu formalmente como presidente da República. Ou seja, agiu em nome do Estado, em nome do Poder Executivo, de uma pessoa jurídica. Nesse caso, ainda prevalece a aplicabilidade da anistia concebida pela Constituição que favorece somente uma pessoa privada, particular e não estatal? É preciso saber isso, qual o alcance da anistia. E, se ainda considerarmos ele como pessoa particular, se ele atentou contra a democracia, poderia então haver anistia se a democracia é o princípio dos princípios? O princípio continente, o maior da Constituição, pode ser alvo de crime deliberado para varrê-lo do mapa?

Valor: O debate é justamente se a proposta de anistia atingiria apenas os envolvidos no 8 de janeiro de 2023, ou se também poderia beneficiar Bolsonaro. E se esse perdão seria constitucional.

Ayres Britto: Anistia é isentar de pena alguém que, a princípio, estaria submetido a sanções jurídicas. É preciso saber primeiro se a anistia beneficia apenas os particulares ou também os agentes estatais que agiram em nome do próprio Estado. Isso passaria a tomar o nome de autoanistia. A Constituição não fala de autoanistia.

Valor: Os bolsonaristas alegam que a anistia seria o caminho para pacificar o país, ou, como eles diziam, “virar a página”. Para o senhor, como apaziguar ou atenuar o tensionamento do Brasil?

Ayres Britto: Não se pode, a golpes de ameaças, de coação de um Poder contra outro ou da própria sociedade civil contra os Poderes estatais, conseguir a pacificação. A pacificação não virá violentando-se a Constituição Federal. A Constituição põe cada um dos Poderes no seu devido lugar. É isso e pronto, acabou. O que interessa é que cada um funcione livremente e com independência. E na ordem lógica e cronológica de que trata a Constituição a partir do artigo 2º: primeiro independência e, depois, harmonia. A pacificação vem pelo respeito à Constituição. Não à base de coação, de ameaça, de chantagem. A meta de todos nós é a fonte. E a fonte das leis é a Constituição, é ela a lei das leis. Vamos bater continência para a Constituição, e o país estará pacificado. Simples assim.

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