Por Camila Zarur / Valor Econômico
Ayres Britto diz que pacificação do país virá
por respeito à Constituição, não por anistia
Perdoar eventuais condenações do ex-presidente
Jair Bolsonaro seria uma “autoanistia”, e não há previsão para isso dentro da
Constituição. É o que afirma o ministro aposentado e ex-presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto. Na visão do ex-magistrado, a
tentativa do bolsonarista de reverter os resultados das eleições de 2022 e
impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva foi feita enquanto o ex-mandatário
ainda estava no cargo. “Ou seja, agiu em nome do Estado, em nome do Poder
Executivo, de uma pessoa jurídica”, afirma Ayres Britto ao Valor. Nesse sentido, o
ex-ministro continua, o Estado não pode perdoar ele próprio - muito menos para
anistiar uma tentativa de abolição da democracia.
Indicado por Lula ao STF, Ayres Britto rebate
os ataques frequentes à Corte em que ele atuou por quase uma década, de 2003 a
2012. Para o ex-ministro, o Supremo, como guardião maior da Carta Magna, deve
ser quem dá a palavra final. E, diante das pressões americanas ao Tribunal e os
atritos entre Judiciário, Legislativo e Executivo, é categórico: “A harmonia
[entre Poderes] pode ser eventualmente sacrificada, mas a independência não.”
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Como o senhor avalia o julgamento do
ex-presidente Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal?
Carlos Ayres Britto: Gosto sempre de
bater continência para a lei maior, porque o que interessa não é minha vontade
subjetiva, é a vontade objetiva do direito a partir da Constituição. O início
de tudo é situar o caso no contexto do direito positivo a partir da
Constituição. O que é preciso saber é se o Supremo tem competência para fazer o
que tem feito. E eu entendo que sim. Até agora, o STF tem agido com base no artigo
da Constituição que o habilita a elaborar seu regimento interno. E nele, o
Supremo se assume como condutor do processo que salvaguarda, em última análise,
o valor e o princípio da democracia. O processo trata de um conjunto de ações
que tiveram, também em última análise, o objetivo de um golpe no Estado de
Direito e um atentado violento à própria democracia brasileira. Também é com
base no regimento interno da Corte que o Supremo vem processando as coisas. E o
faz não plenariamente nem monocraticamente, e sim pela Primeira Turma, composta
de cinco ministros e da qual faz parte o ministro Alexandre de Moraes, relator
do processo. O julgamento nas turmas é uma previsão do regimento interno da
Corte.
Valor: Uma das críticas que o STF tem sofrido é a
competência da Primeira Turma ou do próprio tribunal de julgar o caso. Alegam
que há excessos por parte da Corte.
Ayres Britto: O Supremo é o
guardião maior da Constituição e fez da democracia o princípio supremo dela
própria. O que quero dizer é que a Constituição é a lei das leis. Esse é o
ponto de partida de tudo. A Constituição é a única lei que não tem número,
porque não foi feita pelo Estado. A Constituição originária, de 5 de outubro de
1988, foi elaborada pela nação brasileira. É preciso entender isso e entender
que essa lei suprema fez da democracia substantivamente o princípio supremo.
Então, é uma trajetória que vai do supremo ao Supremo: tem apenas uma lei
suprema, apenas um princípio supremo e apenas um tribunal supremo. E o Supremo
Tribunal Federal, investido nessa competência que lhe defere a Constituição,
está cumprindo com seu dever de salvaguardar a democracia brasileira. E a
democracia é a condição de possibilidade de todos os outros princípios; da
liberdade de imprensa à liberdade de iniciativa, da liberdade de opinião à
separação dos poderes. Tudo tem por condição de possibilidade a democracia.
Valor: Outra crítica recorrente é sobre o STF ser quem
dá a última palavra e não ter sido eleito pelo povo.
Ayres Britto: A Constituição
tem uma lógica própria e irretocável em matéria de estruturação e funcionamento
dos três Poderes do Estado. O Judiciário atua no âmbito do devido processo
legal. A Constituição exige isso, com as garantias do contraditório e da ampla
defesa, e publicizando e fundamentando tecnicamente todas as suas decisões sob
pena de nulidade. Isso não é exigido dos outros poderes. E para o Judiciário, a
Constituição também exige a notabilidade do saber jurídico. Todos os cuidados
foram tomados para que o Judiciário falasse por último. Agora, na escolha de um
ministro do Supremo participam os três Poderes. Há dois tipos de legitimidade
na Constituição. Há uma legitimidade político-eleitoral. É uma legitimidade que
passa pelo Congresso Nacional e pelo presidente da República, que são
instâncias eleitas pelo povo e legitimadas pelo voto direto, universal,
periódico e secreto. E há a legitimidade pelo conhecimento técnico, pela
notabilidade do saber. Esse é outro tipo de legitimidade, mas é igualmente
constitucional. E no caso do Supremo, do STJ [Superior Tribunal de Justiça],
TSE [Tribunal Superior Eleitoral], ainda existe a acumulação de legitimidades:
a científica e a política, porque os nomes passam pelo Congresso e pelo
Presidente da República.
O maior princípio da Constituição, pode ser
alvo de crime deliberado para varrê-lo do mapa?”
Valor: Nos atos bolsonaristas de domingo, foram feitos
duros ataques ao Judiciário por parte da família Bolsonaro e por parte do
governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O ministro Gilmar Mendes, do STF,
rebateu afirmando que não existe “ditadura da toga” nem magistrados agindo como
“tiranos”. Como avalia esse embate?
Ayres Britto: Eu reproduzo,
subscrevo e compartilho do entendimento do ministro Gilmar. Não existe
“ditadura de toga”. O que existe é a obediência à Constituição, que faz do
Judiciário a foz do rio decisório do Estado. Ajuda muito o pensamento a gente
entender que, à luz da Constituição, a partir do artigo 2º, os três Poderes da
União são independentes e harmônicos entre si. E vem uma de ordem tão lógica
quanto cronológica. Por isso a metáfora do rio. O rio decisório do Estado imita
a configuração física de um rio normal. Tem nascente, que é o Poder
Legislativo; corrente, o Executivo; e foz, o Judiciário. Tudo começa com a lei,
é a nascente da vontade formal do Estado, porque ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme diz a
Constituição. Mas quando a lei é editada, ela tem que ser executada pelos
particulares e pelo Estado. O Poder Executivo é chamado assim por gravitar na
órbita da execução das leis, por aplicar as leis com imediatidade, tão logo
editadas. Mas é preciso um terceiro Poder, independente, tanto quanto os outros
dois, e pertencente ao Estado, tanto quanto aos outros dois, porém exterior aos
outros dois e funcionalmente posterior aos outros dois para dizer se o
Legislativo legislou mesmo de acordo com a Constituição e se o Executivo
cumpriu mesmo com fidedignidade a lei. Esse é o Poder Judiciário. Em qualquer
país civilizado é assim.
Valor: O STF sofre uma pressão inédita dos Estados Unidos
por conta do julgamento contra Bolsonaro. Isso, inclusive, tem gerado um
tensionamento entre os Poderes. Como avalia a forma com que a Corte está
lidando com esse cenário?
Ayres Britto: Não faz sentido
um país estrangeiro se imiscuir nos assuntos internos do Brasil e atentar a um
só tempo contra a independência nacional e a autonomia técnica de cada membro
do Poder estatal. O Brasil é independente. E nas relações internacionais do
Brasil, o primeiro princípio a respeitar é o da independência e o da autonomia.
Valor: Essa independência também vale entre os três
Poderes?
Ayres Britto: Se o Estado do
Brasil é independente, os membros dos Poderes são autônomos. Não se abre mão de
jeito nenhum da independência, jamais. Os Poderes não podem fazer cortesia com
esse chapéu da independência. Por isso que a ordem é independência e harmonia.
A harmonia é desejável, mas a independência é imprescindível. A harmonia pode
ser eventualmente sacrificada, mas a independência não.
Valor: Como o senhor enxerga a proposta de anistia que
está sendo discutida pela classe política?
Ayres Britto: Anistia é
perdão, é esquecimento, é deixar de considerar um crime cometido a face da
Constituição e das leis. Mas é preciso saber, e o Supremo vai ter que se
pronunciar sobre isso, se essa anistia alcança crimes contra a própria
democracia e contra o Estado Democrático de Direito, princípio maior da
democracia. Vale ressaltar que se a democracia ruir, tudo mais cai. Por isso
que o atentado à democracia e a tentativa de ruptura do Estado Democrático já
são o crime completo. Você não espera derrubar a democracia ou abolir
violentamente o Estado Democrático para a consumação do crime. Porque se ela
cair, não vai se apurar nada. A condição de apurar a violência contra a
democracia é ela não sucumbir. Do contrário, a nova ordem autoritária não vai
deixar investigar nada. Além disso, o Supremo também vai ter que dizer se é uma
anistia singela a beneficiar um particular eventual que atenta contra uma lei
estatal, ou se é uma anistia que alcança também os próprios agentes estatais.
Porque quando alcança os agentes estatais, deixa de ser simplesmente anistia e
passa a ser autoanistia. O Estado não é senão seus agentes em ação. Perdoar um
agente estatal que agiu formalmente em nome do Estado é anistiar o próprio
Estado. O Supremo vai ter que decidir se a Constituição chancela esse tipo de
ampliação do instituto jurídico da anistia. Eu entendo que não.
Valor: O agente estatal, nesse caso, é um presidente
da República.
Ayres Britto: Seria anistiar
um presidente da República que agiu formalmente como presidente da República.
Ou seja, agiu em nome do Estado, em nome do Poder Executivo, de uma pessoa
jurídica. Nesse caso, ainda prevalece a aplicabilidade da anistia concebida
pela Constituição que favorece somente uma pessoa privada, particular e não
estatal? É preciso saber isso, qual o alcance da anistia. E, se ainda
considerarmos ele como pessoa particular, se ele atentou contra a democracia,
poderia então haver anistia se a democracia é o princípio dos princípios? O
princípio continente, o maior da Constituição, pode ser alvo de crime
deliberado para varrê-lo do mapa?
Valor: O debate é justamente se a proposta de anistia
atingiria apenas os envolvidos no 8 de janeiro de 2023, ou se também poderia
beneficiar Bolsonaro. E se esse perdão seria constitucional.
Ayres Britto: Anistia é
isentar de pena alguém que, a princípio, estaria submetido a sanções jurídicas.
É preciso saber primeiro se a anistia beneficia apenas os particulares ou
também os agentes estatais que agiram em nome do próprio Estado. Isso passaria
a tomar o nome de autoanistia. A Constituição não fala de autoanistia.
Valor: Os bolsonaristas alegam que a anistia seria o
caminho para pacificar o país, ou, como eles diziam, “virar a página”. Para o senhor,
como apaziguar ou atenuar o tensionamento do Brasil?
Ayres Britto: Não se pode, a golpes de ameaças, de coação de um Poder contra outro ou da própria sociedade civil contra os Poderes estatais, conseguir a pacificação. A pacificação não virá violentando-se a Constituição Federal. A Constituição põe cada um dos Poderes no seu devido lugar. É isso e pronto, acabou. O que interessa é que cada um funcione livremente e com independência. E na ordem lógica e cronológica de que trata a Constituição a partir do artigo 2º: primeiro independência e, depois, harmonia. A pacificação vem pelo respeito à Constituição. Não à base de coação, de ameaça, de chantagem. A meta de todos nós é a fonte. E a fonte das leis é a Constituição, é ela a lei das leis. Vamos bater continência para a Constituição, e o país estará pacificado. Simples assim.
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