terça-feira, 9 de setembro de 2025

Por que o julgamento de Bolsonaro não vai pacificar o país. Por Joel Pinheiro da Fonseca

Folha de S. Paulo

Valores que pareciam hegemônicos estão sendo contestados por novas forças políticas

A condenação de Bolsonaro não pacificará nada. A sociedade seguirá tão ou mais dividida do que estava. Bolsonaro não é apenas um indivíduo popular. Ele é popular porque surfa uma onda, a ascensão de uma nova direita mais radical, profundamente contestatória do establishment, que continuará a fluir mesmo que ele saia de cena.

O colapso do governo francês após um voto de desconfiança ao primeiro-ministro Bayrou tem o mesmo pano de fundo: um bloco de direita nacionalista com o qual o governo não compõe, e que, segundo pesquisas, representa 35% do eleitorado. No Japão, na renúncia do primeiro-ministro Shigeru Ishiba no domingo, a mesma história: seu partido quer recuperar um eleitorado que tem sido perdido para partidos de direita radical, inclusive o Sanseito, fenômeno de popularidade.

Dado que um fenômeno muito parecido está acontecendo em diversos países, em vários continentes, ao mesmo tempo, não dá para nos restringirmos a explicações locais. Há causas globais em jogo. Minha hipótese é que essa causa seja as redes sociais. O fato de todos os citados serem particularmente fortes nas redes não é coincidência. Essa nova forma de comunicação fez mais do que apenas agilizar e facilitar o contato com amigos e conhecidos. Ela quebrou a estrutura de produção e transmissão de informação na sociedade.

Antes das redes, só tinha voz pública relevante quem tivesse em mãos o megafone da imprensa. Empresas de mídia em competição guiadas por códigos de ética, apuração profissional, pontes com as universidades e reputação a zelar garantiam uma qualidade mínima da informação e excluíam da conversa pública qualquer voz tida por maluca ou ignorante demais. E estar fora da imprensa era como não existir.

As redes deram um megafone na mão de cada indivíduo para falar o que quisesse, sem nenhum tipo de controle prévio. É cada um com sua capacidade de chamar a atenção e persuadir o resto. Os algoritmos entram aí facilitando a entrega aos usuários daquilo que eles querem ouvir, venha de onde vier. Eles não criam esse processo. O papel de chancela da mídia se foi. O peso retórico das credenciais acadêmicas, com os quais se justificava a posição de privilégio na comunicação, se esvaiu. Todos estão em pé de igualdade na plataforma.

Ocorre que a velha ordem, ao sustentar o poder de uma elite cultural e intelectual, trazia consigo certo conjunto de valores que, por não serem questionados, pareciam hegemônicos: cosmopolitismo, uma visão laica e progressista da vida, a democracia liberal, a preocupação ambiental, os direitos humanos, o valor da educação formal, a paz.

Agora tudo isso está sendo contestado por essas novas forças políticas. Contestação que não fica só no plano abstrato da divergência de valores como chega também na acusação direta a essas elites culturais —midiáticas, universitárias, judiciárias— que ocuparam por muito tempo a posição de árbitros do verdadeiro, do bom e do belo para toda a sociedade.

A democratização traz o conflito, e não a harmonia. Os valores agora sob ataque merecem ser defendidos. Eles ainda são, parece-me, o que de melhor temos para criar sociedades em que vale a pena viver. Mas seu triunfo não é mais certo e muito menos automático. Terá que vencer continuamente um debate que não se encerrará com a condenação de um ou outro delinquente.

 

 

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