Folha de S. Paulo
Valores que pareciam hegemônicos estão sendo
contestados por novas forças políticas
A condenação de Bolsonaro não pacificará
nada. A sociedade seguirá tão ou mais dividida do que estava. Bolsonaro não é
apenas um indivíduo popular. Ele é popular porque surfa uma onda, a ascensão de
uma nova direita mais radical, profundamente contestatória do establishment,
que continuará a fluir mesmo que ele saia de cena.
O colapso do governo francês após um voto de desconfiança ao primeiro-ministro Bayrou tem o mesmo pano de fundo: um bloco de direita nacionalista com o qual o governo não compõe, e que, segundo pesquisas, representa 35% do eleitorado. No Japão, na renúncia do primeiro-ministro Shigeru Ishiba no domingo, a mesma história: seu partido quer recuperar um eleitorado que tem sido perdido para partidos de direita radical, inclusive o Sanseito, fenômeno de popularidade.
Dado que um fenômeno muito parecido está
acontecendo em diversos países, em vários continentes, ao mesmo tempo, não dá
para nos restringirmos a explicações locais. Há causas globais em jogo. Minha
hipótese é que essa causa seja as redes sociais. O fato de todos os citados
serem particularmente fortes nas redes não é coincidência. Essa nova forma de
comunicação fez mais do que apenas agilizar e facilitar o contato com amigos e
conhecidos. Ela quebrou a estrutura de produção e transmissão de informação na
sociedade.
Antes das redes, só tinha voz pública
relevante quem tivesse em mãos o megafone da imprensa. Empresas de mídia em
competição guiadas por códigos de ética, apuração profissional, pontes com as
universidades e reputação a zelar garantiam uma qualidade mínima da informação
e excluíam da conversa pública qualquer voz tida por maluca ou ignorante
demais. E estar fora da imprensa era como não existir.
As redes deram um megafone na mão de cada
indivíduo para falar o que quisesse, sem nenhum tipo de controle prévio. É cada
um com sua capacidade de chamar a atenção e persuadir o resto. Os algoritmos
entram aí facilitando a entrega aos usuários daquilo que eles querem ouvir,
venha de onde vier. Eles não criam esse processo. O papel de chancela da mídia
se foi. O peso retórico das credenciais acadêmicas, com os quais se justificava
a posição de privilégio na comunicação, se esvaiu. Todos estão em pé de igualdade
na plataforma.
Ocorre que a velha ordem, ao sustentar o
poder de uma elite cultural e intelectual, trazia consigo certo conjunto de
valores que, por não serem questionados, pareciam hegemônicos: cosmopolitismo,
uma visão laica e progressista da vida, a democracia liberal, a preocupação
ambiental, os direitos humanos, o valor da educação formal, a paz.
Agora tudo isso está sendo contestado por
essas novas forças políticas. Contestação que não fica só no plano abstrato da
divergência de valores como chega também na acusação direta a essas elites
culturais —midiáticas, universitárias, judiciárias— que ocuparam por muito
tempo a posição de árbitros do verdadeiro, do bom e do belo para toda a
sociedade.
A democratização traz o conflito, e não a
harmonia. Os valores agora sob ataque merecem ser defendidos. Eles ainda são,
parece-me, o que de melhor temos para criar sociedades em que vale a pena
viver. Mas seu triunfo não é mais certo e muito menos automático. Terá que
vencer continuamente um debate que não se encerrará com a condenação de um ou
outro delinquente.
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