quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Um caminho de luz, por Ivan Alves Filho

O desenho, isto é, a forma como os corpos e os objetos se alinham no espaço, está na base de tudo. À nossa volta, não existe nada sem forma, tanto na natureza quanto fora dela, nas chamadas criações do espírito humano. O arquiteto Oscar Niemeyer, um mestre da forma, justamente, se considerava um desenhista. E era. 

As formas também possuem história, apresentando-se como mais um elemento dela. Não existe conteúdo desacompanhado de uma forma. Neste sentido, poderíamos dizer que a forma é o conteúdo da Arte. A profundidade de campo, que deixaria marcas indeléveis na pintura moderna e na fotografia, mais para frente, tem que ver com o alargamento das fronteiras trazido pelas navegações. E este alargamento se infiltra na estrutura mental dos homens, reconfigurando a nossa maneira de apreender ou ver o próprio espaço. O mundo agora é praticamente infinito para os homens. Na base desta aventura náutica se encontra o pequeno Portugal, um país que apresentou o Oriente ao Ocidente. O Brasil é resultado direto desta expansão, que a Arte tão bem captou. Na Galeria Uffizi, na belíssima Florença, podemos ter uma verdadeira aula a este respeito. 

A sensibilidade é própria da Arte como a razão o é da Ciência. Assim, dançar é desenhar com o corpo. E, prosseguindo nesta mesma linha, fotografar é desenhar pela luz. É isso que Samuel Iavelberg faz: desenha pela luz – ou seja, fotografa (do grego, foto, luz, e grafia, desenho).  

Eu tive a sorte e a honra de acompanhar a trajetória do fotógrafo Samuel Iavelberg desde a primeira metade dos anos setenta. Samuca montou, nessa ocasião, um laboratório fotográfico no apartamento onde morava em Colônia, na Alemanha. Nós residimos juntos nessa época (transcorria então o ano de 1973) e eu também me aventurei pela fotografia por um momento, até optar definitivamente pelo estudo da História. E o Samuel prosseguiu olhando o mundo à sua volta, tornando-se este estupendo fotógrafo que é hoje. Foi à África subsaariana, esteve na cobertura da Copa do Mundo de 1982 na Espanha e assumiu a editoria de fotografia da revista Istoé. Apaixonado pela música brasileira, Samuel realizou primorosos ensaios fotográficos e exposições sobre o samba. Na Europa, documentou os exilados brasileiros – e, arrisco a dizer, que ninguém tem, neste tocante, um material tão significativo quanto ele. Gregório Bezerra, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Leandro Konder (a capa do livro de memórias do nosso saudoso Leandro estampa uma bela fotografia em preto e branco do Samuel), todos foram clicados por ele. Que livro não daria! Examinar essas fotografias, hoje, nos obriga quase a imaginar como seria um encontro dos Conjurados mineiros no degredo em terras africanas, no final do século XVIII. 

Seja como for, volta e meia Samuel brinda-me com suas fotografias sobre Portugal, o país natal de sua querida Ana, com quem vive há mais de 50 anos. O que tenho diante dos olhos, para além de um significativo documento social, compõe também uma verdadeira lição de como desvendar a beleza por vezes tão escondida no nosso dia a dia. E que poucos, muito poucos, percebem. Uma beleza que pode se alojar no riso solto da criança, ou se revelar no árduo trabalho dos camponeses ou, ainda, na reivindicação política pelo pão de cada dia.

O registro de uma senhora idosa descansando em um banco de madeira em uma pracinha de Lisboa, creio eu, comove por si só. Ou o corpo não pede repouso? Aos poucos, vou percorrendo este país mítico da Revolução dos Cravos, este Portugal democrático que empolgou o mundo. A terra de Luiz de Camões, Fernando Pessoa e José Saramago, e também de Álvaro Cunhal, Miguel Urbano Rodrigues e de todas aquelas pessoas anônimas ocupando suas ruas, campos e construções. Samuel Iavelberg trata a fotografia como uma estética da luz e ele tem toda razão. Nada parece ter escapado ao olhar apurado do fotógrafo, unindo sensibilidade e técnica a um grau somente visto na obra de grandes profissionais e humanistas, como Henri Cartier-Bresson.

Decididamente, o tempo das recordações: como esquecer que Samuel e eu fomos convidados pelo saudoso Alberto Passos, um dos fundadores do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), para almoçar, em Lisboa, em determinado mês de 1975, e que o Alberto nos informou que logo após o nosso encontro iria selar o reconhecimento de sua pátria pelo governo brasileiro. Ali, precisamente naquele dia, na antiga Metrópole, se encerravam mais de cinco séculos de presença colonial de Portugal na África. E as duas ex-colônias portuguesas, Angola e Brasil, davam-se as mãos. 

E eu não poderia terminar este texto sem me referir ao Samuel Iavelberg enquanto ser humano. Pois o homem ajuda a compreender o fotógrafo. Raramente eu vi, ao longo da vida, alguém tão solidário e fiel aos ideais de liberdade que pautaram sua juventude quanto o meu querido amigo/irmão Samuel, apesar de todos os riscos que correu.

O escritor Jean d´Ormesson escreveu que um velho amigo seu havia soltado as estrelas do céu para melhor clarear a sua vida e a dos seus amigos. Samuel Iavelberg fez exatamente a mesma coisa. Agradeço sempre por sua amizade e por compartilhar seu trabalho com os seus inúmeros amigos. E digo em toda consciência que Samuel transformou a sua própria existência em um caminho salpicado de luz. 

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