- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Uma historiografia do atual exageradamente centrada na figura de Lula obscurece a trama de relacionamentos e de fatos que é essencial para a compreensão da crise política que tem nele o principal protagonista. E até mesmo para compreender o que pode ser definido como o drama de sua pessoa.
O lulismo surgiu e se firmou não propriamente como desencontro com a estrutura partidária e desvio de sua ideologia de coalizão social-centrista. Mas como sucedâneo de uma fragilização de identidade partidária decorrente das contradições internas do partido. Fracionado em três grandes grupos ideológicos - a facção religiosa, a sindical e a de esquerda resultante da implosão que o stalinismo impôs ao comunismo -, o PT se propôs como um partido social-democrata da luta de classes. Diversidade demais para uma convergência viável.
A identidade partidária impossível encontrou em Lula e no populismo lulista um substituto não programático e sobreideológico. Isso teve um preço, o do fazer sem saber, nas condições adversas da ação política dominada pela complicada trama de vontades desencontradas de uma governabilidade sofrível. Lula se tornou a personificação do poder sem sê-lo e sem saber que não o era.
Num livro de 1943, "A Poesia Afro-Brasileira", Roger Bastide, o grande sociólogo francês que substituíra o belga Claude Lévi-Strauss na cátedra de sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, demonstrou que na forma e no estilo os nossos poetas negros fizeram poesia de branco. Sublinhava a trama de mecanismos sociais que capturam propósitos e intenções e os desfiguram. É próprio, aliás, da sociedade contemporânea o desencontro entre o que se quer, se pensa e se diz estar fazendo e o que de fato se faz. Todos, em diferentes graus, passam por isso. A diferença entre uns e outros é que uns têm disso consciência no esforço de superar a alienação. Outros não.
Nas questões relativas aos grandes embates sociais e políticos, com facilidade os protagonistas de possíveis grandes rupturas, ao final do ciclo de sua missão, acabam descobrindo ter feito exatamente o oposto do que desejavam fazer. Ou do que diziam e pensavam estar fazendo.
Se tomarmos como referência duas grandes e decisivas figuras da história política brasileira, dom Pedro II e Getúlio Vargas, veremos que foram, provavelmente, os nossos dois únicos governantes que ao cabo de suas vidas puderam dizer que o projeto de nação que representaram se cumprira. O caso de dom Pedro é significativo. Aos cinco anos de idade, deixado pelo pai aos cuidados do governo, tornou-se um filho da nação e personificou de maneira exemplar o estadista da unidade nacional. Essa era sua missão.
Getúlio também conseguiu personificar e executar um projeto de nação, que sintetizava as aspirações de grupos civis e militares que, em nome dos valores do positivismo, opunham-se ao localismo arcaico das oligarquias regionais. Era o projeto de transformação de um país dependente da agricultura de exportação num país industrial. Um projeto que se definiu aos poucos, conforme a circunstância histórica da sociedade e do poder. Se Getúlio não foi o pai político da classe operária brasileira, foi quem a consolidou e lhe deu um ideal de participação na modernização do país.
O presidente Luiz Inácio, a seu modo, teve nas mãos a possibilidade de definir e executar um projeto de nação que transformaria o homem simples, fosse ele pardo, branco ou negro, simbólicos remanescentes da nossa sociedade de escravidões, num protagonista ativo e consciente da história moderna do Brasil. O Partido dos Trabalhadores foi o único que percebeu que estava à disposição de protagonistas potenciais essa missão política. Porém, Lula e o PT a compreenderam no viés do populismo que acoberta a realidade opaca do processo político. Foram capturados pela ambição do poder sem alternância partidária, que os trouxe até estes dias cinzentos de incerteza para o país inteiro.
Das três figuras mencionadas, Lula é a que sai pela porta lateral do processo histórico, na armadilha da falsa consciência do que é o povo e da minimização das instituições. Esse tormento não se deve ao juiz Sergio Moro, um cumpridor do seu dever como magistrado e funcionário da lei. Equivocadamente eleito por Lula como seu inimigo e algoz. Seu inimigo oculto está nas contradições de origem de seu próprio partido. Devido a ela, o PT não logrou coerência doutrinária para cumprir sua missão histórica. Aprisionou seu líder nos desencontros de um encontro meramente verbal e discursivo. O poder transformou Lula num ser bifronte: uma coisa no poder e outra diferente coisa na porta da fábrica e nas manifestações de rua.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder” (Contexto).
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