- O Globo
‘O Iluminismo está em crise. Não estou certo se cabe uma análise política de um fenômeno como Trump. Estamos em outro terreno, podemos chamá-lo de realismo mágico, de antropologia, de qualquer outra coisa. E o pior é que parece haver um desprezo generalizado dos cidadãos comuns, uma revolta clara contra tudo que pode ser classificado como elite intelectual ou jornalística.’
John Carlin, autor do diagnóstico, é o refinado jornalista britânico que escreveu “Playing the Enemy”, a narrativa de como Nelson Mandela promoveu a reconciliação racial na África do Sul por meio da Copa do Mundo de Rúgbi. Contudo, diante do “fenômeno Trump”, um Carlin aturdido rende-se às facilidades da arrogância. Classificar o resultado eleitoral nos EUA como “realismo mágico”, rejeitando a hipótese de uma análise política, é praticamente o mesmo que repetir uma frase desastrosa proferida na campanha por Hillary Clinton, quando ela crismou como “deploráveis” os eleitores do adversário. A soberba dos dois, e de tantos outros, evidencia uma fratura maior, de natureza cultural e geográfica.
Três jornalistas do “New York Times” examinaram estatísticas das últimas sete eleições para traçar os contornos da fratura. Eles concluíram que, ao longo de um quarto de século, aumentou fortemente a proporção de eleitores que vivem em municípios nos quais um dos dois grandes partidos obteve vitórias avassaladoras — a tal ponto que, em 2016, 60% do eleitorado habitam em um desses municípios “vermelhos” (republicanos) ou “azuis” (democratas). A cisão geográfica, antes de se manifestar no plano político-partidário, reflete uma fronteira cultural. As pessoas tendem, cada vez mais, a residir perto dos que pensam de modo parecido e mantêm estilos de vida similares, explica Bill Bishop, co-autor de um livro sobre esse processo de “autossegregação”.
Os municípios “vermelhos” são numerosos (2.232), ocupam 59% da área dos EUA e abrigam 94 milhões de americanos. Já os “azuis” são escassos (242), ocupam apenas 7% da área total, mas perfazem 99 milhões de habitantes. A fronteira separa a cidade grande da cidade pequena: a metrópole cosmopolita vota nos democratas; a província interiorana vota nos republicanos. Os municípios “vermelhos” têm maior proporção de população branca e são mais religiosos, mas os brancos dos municípios “azuis” têm renda maior e nível educacional mais elevado.
A fratura rompeu o diálogo, sabotando a capacidade de entender o ponto de vista do outro. Jovens estudantes marcham nas cidades “azuis” em protesto contra o voto das cidades “vermelhas”. Se fosse o contrário — se filiados da Associação Nacional do Rifle marchassem no Texas contra o triunfo de Hillary, o que diriam os jornais? Se vivesse nos EUA, John Carlin residiria numa metrópole “azul” — e, por isso, enxerga o voto dos municípios “vermelhos” como uma patologia ou uma deformação moral.
O triunfo inesperado de Trump provocou um choque na imprensa americana, que resolveu, enfim, ouvir as vozes dos “deploráveis”. Gente invisível — blue-collars, hillbillies e rednecks — ganhou linhas inéditas nos grandes jornais e revistas. O resultado é um mosaico mais heterogêneo do que suporia Carlin. “Quem se importa?”, retrucou um operário desempregado de Michigan, antigo eleitor democrata que agora votou “vermelho”, diante da pergunta inevitável sobre o sexismo de Trump. A cidadezinha dele morre aos poucos, abandonada pelas indústrias, devastada pelo vício da heroína entre os jovens. Por que, ali, alguém ligaria para as travessuras do Donald (ou do Bill) no reino encantado de Manhattan?
Os “deploráveis” não cabem na caixinha do preconceito ao avesso. “Eu não sou uma racista, chauvinista ou supremacista branca”, esclarece Asra Nomani, jornalista, imigrante indiana, muçulmana, que transitou de um emocionado apoio a Obama, em 2008, para um relutante voto em Trump. Ela é favorável ao direito ao aborto e se preocupa com as mudanças climáticas, mas não tem como pagar seu seguro-saúde e não crê na firmeza dos democratas diante do extremismo islâmico.
Um eleitor sulista de Trump ofereceu uma longa explanação de seu modo de ver o mundo. Dois ou três trechos: “Eu tenho mestrado. Meus filhos vão à escola pública com garotos de todas as raças, cores e credos. Nosso bairro tem famílias de imigrantes, minorias, casais do mesmo sexo. Não tenho tempo, energia ou espaço no coração para o ódio ou o racismo. Trabalho duro e faço sacrifícios por minha família. Sou romântico o suficiente para ainda acreditar que os EUA foram projetados como uma meritocracia. Sei que existe uma classe dirigente no nosso país e, contrariamente ao que muitos creem, minha pele branca não me dá acesso a ela. Sei que os Clintons não se importam comigo e que Trump não dá a mínima para mim. Estou farto da máquina passando por cima de nós — todos nós.”
E o voto “vermelho”, por quê? “É loucura pensar que não devemos vigiar nossas fronteiras quando pessoas querem nos matar porque não apedrejamos homossexuais ou porque permitimos que as mulheres dirijam. Loucura é pensar que você pode viver nesse país sob o radar, ilegalmente, beneficiando-se do que herdamos e trabalhamos para ampliar e preservar sem oferecer nenhuma contrapartida aos que seguem a lei. Por isso, votei com o dedo do meio: uma bola de guindaste de demolição.”
Bandeiras da Confederação, rifles de assalto, milícias irregulares, xenófobos irrecuperáveis — tudo isso existe e terá tido algum peso no 9/11. Contudo, as vozes majoritárias dos “deploráveis” pertencem ao mundo da política, não ao do “realismo mágico”. Elas exprimem argumentos racionais, certos ou errados, não um jorro indiferenciado de ódio. Os intelectuais “azuis”, prisioneiros da úbris, já passaram tempo demais identificando os eleitores de Trump ao próprio Trump. O 9/11 fará algum bem se obrigá-los a olhar para além do espelho.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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