Por Helena Celestino / Valor Econômico
‘Por enquanto, o SUS está vivendo um gargalo,
que pode se transformar numa represa’, diz o médico Luiz Antonio Santini, um
dos autores de ‘SUS, uma biografia: Lutas e conquistas da sociedade brasileira’
A cena era surpreendente. Em plena Olimpíada,
centenas de camas de hospital sendo empurradas palco adentro, com pacientes e
médicos dançando em torno delas. Aconteceu em Londres, foi uma das imagens
fortes da abertura dos Jogos Olímpicos de 2012. Era uma homenagem dos
britânicos ao Sistema Nacional de Saúde, o NHS, um dos orgulhos do país. A
coreografia foi tão aplaudida quanto as imagens da rainha Elizabeth e James
Bond voando, lado a lado, pelos céus.
O NHS é como o SUS, só que menos abrangente.
O Sistema Único de Saúde brasileiro foi inspirado no modelo britânico, mas saiu
maior e mais inclusivo, dizem os sanitaristas históricos, aqueles que lideraram
a luta para incluir na Constituição de 1988 o acesso universal e igualitário à
saúde pública no Brasil.
Foi um marco civilizatório, dizem todos.
Recentemente provou sua excelência ao salvar milhões de vidas durante a
pandemia exercendo a autonomia em estados e municípios contra o negacionismo do
governo Bolsonaro em relação a vacinas e à ciência. Saiu dos três anos da
pandemia com prestígio alto, mas com graves sequelas: a Fiocruz estima que a
fila para cirurgias tenha 1 milhão de pessoas, o cancelamento dos exames
preventivos de câncer de mama e colo de útero chegou a 80% na pandemia e os
transplantes renais caíram 30%. O subfinanciamento agravou-se, as tecnologias
ficaram defasadas, a população a ser atendida aumentou.
“Por enquanto, o SUS está vivendo um gargalo,
que pode se transformar numa represa”, alerta Luiz Antonio Santini, um dos
médicos sanitaristas históricos, que lança “SUS, uma biografia: Lutas e
conquistas da sociedade brasileira” (ed. Record, 350 págs., R$ 89,90), escrito
com Clóvis Bulcão, historiador renomado.
Eles contam como a luta pelo SUS ficou colada
aos movimentos contra a ditadura, pela anistia e a redemocratização. Esses
temas reuniam pessoas vindas de várias correntes de pensamento, gente ligada às
igrejas, à universidade, à saúde, à política. Alguns tornaram-se liderança,
como Sergio Arouca, Hésio Cordeiro, José Ramos Temporão e, claro, Luiz Santini.
Vários políticos tiveram atuação destacada no
Congresso, muitos médicos elegeram-se como deputados constituintes e levaram a
questão para a Comissão da Constituinte. Chamavam-se de Partido Sanitário, para
não serem misturados com nenhuma organização política. “O divisor de águas era
ser democrata. A questão da saúde tornou-se uma questão de sociedade”, diz
Santini.
Vitoriosos, a obrigação do Estado de prover a saúde foi inscrita na Constituição e as conquistas são muitas. Mas hoje o sanitarista diz que está na hora da refundação do SUS.
Trechos de entrevista de Santini, com participação de Bulcão:
Valor: Vocês contam a história da glória
e da crise atual do SUS. Veem um movimento da sociedade para recuperá-lo?
Luiz Antonio Santini: Não consegui ainda
ver isso acontecer. A ideia do livro foi provocar a discussão da importância do
SUS, mas também da sua incompletude, do que está feito e do que falta fazer. A
construção do SUS é um processo que não termina porque a saúde sempre vai
precisar de novos modelos e do engajamento da sociedade. Antes, nos anos 70, o
Brasil tinha 90 milhões de habitantes, a maior parte da população era rural, a
medicina era artesanal, exercida por médicos com seus estetoscópios e pouco
mais. Se voltar ao começo do século, a medicina era quase uma competição com
curandeiros ou com as avós da gente e seus remedinhos. A partir da luta pela
redemocratização, o Brasil fez uma grande reforma na saúde e começou o processo
de criação do SUS. Só que isso é um processo contínuo.
Valor: Quais são as maiores
dificuldades?
Santini: A realidade é desafiadora para
o nosso sistema. Temos de fazer frente a subfinanciamento, mudanças
populacionais, urbanização, mudança de tecnologias, entrada do setor privado
forte no sistema - antes era praticamente um setor privado filantrópico, com
atenção hospitalar de baixa complexidade.
Valor: O NHS, da Grã-Bretanha, que é
parecido com o do Brasil, também sofre com subfinanciamento.
Santini: No subfinanciamento do NHS,
eles gastam 9% do PIB, com todos os recursos de origem pública. No nosso, nós
gastamos 10% do PIB, sendo que 3% são de dinheiro público, o resto é privado:
plano de saúde, remédios, consultas. Os nossos problemas são semelhantes, mas
nossas soluções são muito mais difíceis de serem implementadas.
Valor: Apesar do SUS, o acesso reflete a
desigualdade de país, não?
Santini: E isso se reflete nos dados que
a gente tem, há graves diferenças entre as capitais e o interior das regiões.
Por exemplo, o quadro vai ser diferente em Niterói e São Gonçalo ou São João de
Meriti. Niterói tem o sexto PIB do país [13º, segundo os dados mais recentes do
IBGE] e a discrepância de renda é pequena. O nosso desafio é específico para
garantir à população recursos igualitários à saúde, mas também é político e
econômico porque reflete essa desigualdade do país.
Valor: A Fiocruz e associações de
médicos têm seguro-saúde privado. É uma contradição?
Santini: Os planos de saúde são sonho de
consumo e isso complica muito. Nós, da saúde, que propomos o SUS como politica
para o país, nos valemos dos seguros-saúde para nossas necessidades
específicas, o que nos diferencia do resto das pessoas. Os sindicatos de
profissionais da saúde querem planos de saúde e, às vezes, omitem isso na pauta
para não pegar mal. Mas cria uma pressão.
Valor: Como fazer o SUS entrar no sonho
de consumo das pessoas?
Santini: Isso é um dilema que está
colocado, mas se for bem tratado pode melhorar, porque o sistema privado não
pode competir com o sistema público, tem de ser complementar. Nos transplantes
acontece isso e o resultado é muito bom. Mais de 90% dos transplantes de órgão
no Brasil são feitos e pagos pelo SUS. Muitos são feitos nos hospitais
privados, no Einstein, no Sírio-Libanês, e o SUS paga. A não ser no transplante
de córnea e o de rim entre vivos. Transplante de órgãos, de medula, hemodiálise
em grande parte é pago pelo SUS. Há resistências do lado do setor privado, do
ponto de vista econômico, e resistência do setor público do ponto de vista
ideológico, uma maneira de pensar a abrangência do SUS sem considerar a
participação do setor privado. Não é fácil resolver, mas é quase impossível
sair da encruzilhada no SUS sem isso.
Valor: Quantas pessoas têm planos de
saúde?
Santini: Entre 40 e 45 milhões. Este
número varia de acordo com a economia do país. Na pandemia, por exemplo, saiu
muita gente dos planos porque não podia mais pagar as mensalidades, e isso
significou uma mexida muito forte na economia do sistema. É preciso criar um
arranjo comum da saúde pública e a privada, hoje temos um jogo de perde-perde
dos dois lados, temos de ter um de ganha-ganha. Talvez seja possível fazer algo
semelhante ao que acontece com os transplantes.
Valor: Mas transplante não é necessidade
para um número menor de pessoas?
Santini: Não é pequeno, não, o Brasil é
o segundo maior transplantador do mundo. Em vários serviços médicos talvez seja
possível haver um entendimento semelhante ao dos transplantes. Mecanismos que
possam ser auditados e com regras estabelecidas. Nos transplantes, a fila se
mexe dependendo dos exames feitos: se é compatível, onde está o órgão e o
paciente. Coração não pode ficar mais de duas horas fora do corpo, então o
paciente mais próximo é chamado e o transplante pode ser no Sírio ou no
hospital que estiver do lado. O registro é único e o pagamento é único.
Valor: Mas como o SUS poderia atender
mais rápido as pessoas em caso de câncer, por exemplo?
Santini: Duas coisas são fundamentais,
uma organização que teria todos os serviços oferecidos numa única base de
dados. E ao mesmo tempo teria toda a necessidade de serviços também nessa base
de dados. E faz-se um batimento diário e para cada tipo de câncer você pode
fazer o que chamamos de navegação do paciente - cada tipo de câncer tem
necessidades temporais diferentes. A espera de um ano para fazer um tratamento
de câncer de mama significa praticamente perder a oportunidade de tratar.
Existe uma lei no Brasil que diz que, feito o diagnostico de câncer, o paciente
tem de começar a ser tratado no máximo em 60 dias. Menos de 40% conseguem isso,
60% começam num prazo maior que esse e pode ir até 180-365 dias, o que é um
absurdo.
Valor: A Parceria Público-Privada não
poderia resolver isso?
Santini: Pode, mas precisa de
determinação política. O desafio que se coloca é, sem abrir mão do que se
conquistou, criar um novo modelo que incorpore os recursos disponíveis,
inclusive o privado. No livro a gente cita a experiência de São Paulo, onde
funciona melhor do que no Rio.
Valor: Como conseguir financiamento
maior?
Clóvis Bulcão: A gente teve o Temporão
[José Ramos Temporão, ex-ministro da Saúde de Lula] e Paulo Guedes [ex-ministro
da Economia de Bolsonaro] fazendo propostas bem parecidas: reduzir o desconto
dos contribuintes no Imposto de Renda por gastos de saúde, o que é uma forma de
subsídio ao setor privado. Ou pelo menos estabelecer um limite, como é feito em
relação aos gastos com educação. Os dois falaram a mesma língua, mas nenhum
deles botou em prática.
Santini: É muito difícil mudar uma
cultura. A gente tem o “sabe com quem está falando”, vício que torna essas
mudanças politicamente muito difíceis. Por enquanto é um gargalo, mas pode se
transformar numa represa. Nós temos taxas de morte por câncer muito maiores do
que nos países da OCDE, por exemplo. Se uma pessoa espera um ano por
tratamento, ela vai ter uma perspectiva de cura muito menor. Isso é uma questão
de organização e gestão. Tem algumas decisões politicas importantes a serem
tomadas. Os recursos estão disponíveis nessas duas frentes, portanto, o modelo
do transplante pode ser aplicado para tratamento de câncer.
Valor: O senhor conta no livro que o SUS
foi criado para sanear o sistema, emperrado por indicações políticas. Isso
voltou?
Santini: O Rio de Janeiro é o pior caso
de interferência política na gestão, talvez porque tenha a maior rede pública.
Tem uma rede municipal, outra estadual e tem esses hospitais federais que não
formam rede porque são oriundos dos institutos. Isso tudo vem de uma cultura de
isolamento, o Rio não conseguiu implantar o SUS como nos outros estados, a
influência política na gestão do Rio de Janeiro é maior do que na maioria dos
outros estados. Não conheço a situação de cada um, mas não há tanta denúncia,
tanto escândalo nos outros estados como no Rio. No tempo do Inamps [Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, política pública em vigor
antes do SUS], onde eu fui superintendente já na Nova República, isso já
existia e durei menos de um ano como superintendente por ter enfrentado isso -
a proposta do dr. Waldir Pires, ministro da Saúde, era de redução do déficit e
uma das coisas a combater primeiro era a corrupção. E a corrupção não era nos
hospitais, que tinham um corpo técnico muito competente, era via contratos com
o setor privado ainda muito primitivo, eram operadores ambulatoriais. Mas a
corrupção era sim um fator importante porque, se não, o sistema vira
clientelista, paroquial, para atender alguém.
Valor: É isso que vem acontecendo na
crise que a ministra da Saúde enfrenta?
Santini: Sim, é uma disputa sobre quem
manda em cada um dos hospitais. Isso é uma das dificuldades da Nísia
[Trindade], de manejar os interesses políticos aqui no Rio de Janeiro. Imagino
que ela está buscando assumir o controle, mas minha preocupação é que, se não
inserir esses hospitais na rede do estado e do município do Rio, vai ter
dificuldades de resolver.
Valor: A saúde ainda sofre os efeitos da
administração Bolsonaro?
Santini: A tragédia sanitária nas terras
indígenas se agravou muito no governo Bolsonaro. Vem de mais tempo, da ocupação
ilegal e do garimpo, mas Bolsonaro acentuou isso dando armas para as pessoas,
destruindo a Funai, o ICMBio. A sociedade brasileira deve há muitas décadas a
demarcação das terras indígenas. No caso dos yanomamis é evidente a influência
do garimpo na contaminação dos rios e na tragédia que está lá.
Valor: E no Ministério da Saúde?
Santini: Também foi destruído, o SUS só não sofreu mais por causa do modelo tripartite - o modelo de gestão estados, municípios e governo federal. Se não fosse isso, teria sido liquidado. O SUS foi sustentado pelos gestores municipais e estaduais, inclusive com compra de vacinas, criação dos hospitais de campanha. Isso é que o fez funcionar. O Bolsonaro queria interromper o repasse para a assistência médica em estados e municípios, mas a Câmara mandou repassar, o STF mandou repassar. Mas isso deixa muitas sequelas: agrava o subfinanciamento, perde uma rotina de compras, compras de equipamentos, produtos, tudo isso é uma interferência na assistência e gestão. Leva tempo para recuperar.
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