Folha de S. Paulo
O comentarista político é o único a quem não
se permite reivindicar sua objetividade
Na crítica, o juízo de gosto jamais deve ser
entendido como um juízo de valor. E vice-versa. Isso vale para qualquer
atividade dessa natureza, tenha ela como objeto filmes, romances, artes
plásticas ou até mesmo política.
Como todo apreciador de uma forma artística
ou toda pessoa politicamente engajada, o crítico tem suas preferências e
reconhece as obras e os projetos que melhor atendem às suas exigências
estéticas ou morais. No entanto, a atividade analítica deve ser completamente
diferente da experiência estética.
"Eu não gostei dessa obra" não deve ser confundido com "essa obra não presta". Afinal, há coisas de que pessoalmente não gosto, mas que podem ser sublimes em seu gênero; há soluções estéticas ou políticas que não aprovo, mas cuja genialidade não posso deixar de reconhecer. E é claro que adoro, como diria Machado de Assis, certas deliciosas vulgaridades, porque me falam à alma e à sensibilidade, não por seu elevado padrão estético ou político.
O gosto e as preferências continuam sendo
pessoais ou coletivos, mas as razões pelas quais gostamos, os programas
executados em uma determinada obra, as soluções encontradas pelo realizador e
sua originalidade ou banalidade, os padrões que orientam o que é considerado
medíocre ou sublime, tudo isso é discutível. Desde que os parâmetros sejam
apresentados e fundamentados, isso constitui a matéria específica da crítica e
o que a torna diferente da experiência estética ou da prática política.
Na política, contudo, as coisas seguem em
outra direção. Sim, existe a crítica política, assim como existe a crítica de
arte ou de gastronomia, embora não usemos esse rótulo no Brasil. Chamamos de
análise política quando é acadêmica e de comentário político quando é nos meios
de comunicação, mas trata-se exatamente da mesma atividade. O que me
impressiona é como é mais facilmente aceito que a crítica artística, por
exemplo, é uma atividade intelectual independente e objetiva, enquanto o
comentário político profissional é tratado como uma atividade militante.
E quanto mais partidário o leitor, maior a
convicção de que quem faz crítica política é um ativista com privilégios de
fala, mais firme é a crença de que o juízo de valor sobre assuntos políticos
decorre diretamente da inclinação política do comentarista. O comentarista
político é o único crítico a quem hoje em dia não se permite reivindicar que se
orienta por parâmetros objetivos e justificáveis, ou que deve ser considerado
ou contestado com base nos argumentos que sustenta e não na inclinação política
pessoal ou da empresa que veicula sua opinião.
Não é razoável imaginar que a primeira-dama
não poderia se conceder o luxo de ir ao show de Madonna enquanto
um estado brasileiro vive uma tragédia? O parâmetro por trás de um julgamento
desses, uma estimativa de efeito do ato sobre a percepção pública, é do mais
elementar bom senso, e ainda assim a afirmação será contestada ou reforçada com
igual fúria com base em duas presunções.
Uma sobre a posição ideológica do crítico,
identificado obviamente como antagonista à primeira-dama; outra sobre a posição
ideológica do leitor. Se o leitor considerar o comentarista alinhado à sua
própria posição, merecerá elogios pela sensatez; caso contrário, obviamente
quem está errado é o crítico, justo destinatário de todo o desprezo por posição
tão sórdida e parcial.
De duas coisas não se abre mão nessa
percepção: o leitor partidário estará sempre certo e todo comentarista é um
partidário camuflado de crítico político.
O repúdio ao analista, então, será calibrado
a partir de duas estimativas. Primeiro, do alcance da publicação e seus
efeitos. Segundo, da distância cognitiva e moral entre o que o crítico disse e
o que o partidário considera certo.
Quanto maior a distância estimada entre os
dois, ou seja, quanto mais a crítica for considerada errada, e maior a previsão
de efeitos sobre as pessoas, mais o partidário se sentirá compelido a intervir
para tentar "medidas corretivas" que minimizem os impactos da
crítica. Tudo para evitar que leitores neutros sejam levados ao erro pela
parcialidade do comentarista.
A mais comum entre tais medidas é o
comentário que rebate a crítica denunciando sua parcialidade e insultando o
crítico.
De forma espantosamente autoindulgente, neste
caso o insulto não é um ato moralmente inaceitável de violência verbal, mas uma
forma enfática de arrancar a máscara do pretenso crítico e mostrá-lo como
realmente é: um sórdido militante do mal.
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