quarta-feira, 8 de maio de 2024

Zeina Latif - Governos gastadores ficam à mercê de rentistas

O Globo

O caminho para uma dívida menos onerosa e com perfil mais saudável depende de sua redução. E isso requer responsabilidade fiscal

A dívida mobiliária do governo federal voltou a crescer. Está em R$ 6,64 trilhões, o que representa 60% do PIB; cifra elevada na comparação com países parecidos. Isso significa que um grande volume de recursos é direcionado para financiar o governo, em detrimento do investimento privado.

A dívida elevada tende a ser mais cara, especialmente em economias não avançadas. Não só o espaço para redução dos juros básicos do Banco Central é menor, como o prêmio demandado por investidores é maior.

A decisão de quanto gastar é do governo, mas os juros dependem em grande medida da confiança dos investidores na qualidade da gestão fiscal.

Importantes esforços foram feitos na primeira década dos anos 2000 para reduzir o estoque da dívida – a dívida mobiliária saiu de 60% do PIB em 2001 para 40% em 2013. Sucessivos superávits nas contas do governo (resultado primário, que exclui o pagamento de juros) levaram à emissão líquida negativa de títulos públicos. Não por coincidência, houve redução do custo da dívida e da taxa de juros estrutural da política monetária (ou taxa neutra, que é aquela que mantém a inflação na meta, com a economia operando sem ociosidade ou uso excessivo dos fatores de produção). Esta última teria caído de algo como 8,5% ao ano em termos reais em 2001 para cerca de 3,5% em 2013, de acordo com alguns cálculos do BC.

No entanto, a piora dos resultados fiscais a partir de 2012, inclusive mascarada por “contabilidade criativa” (como as “pedaladas”), voltou a exigir emissão líquida de dívida, enquanto seu custo se elevava, bem como a taxa de juros estrutural. O resultado foi a inflexão na trajetória da dívida, que voltou a crescer como proporção do PIB. A alta só não foi maior por conta da própria queda da demanda por títulos públicos, como reflexo da menor confiança de investidores. Isso acabou acarretando o crescimento de operações do BC para enxugar o consequente aumento da liquidez da economia, as chamadas operações compromissadas.

As compromissadas, com estoque atual de mais de 12% do PIB, atendem a uma demanda por liquidez de curto prazo. Seu comportamento é um termômetro da confiança de investidores — exceto o período de grande impulso no seu crescimento, resultante do (acertado) aumento de reservas internacionais pelo BC, principalmente entre 2005 e 2012 (ao comprar dólares, o BC injeta reais no sistema, sendo a maior liquidez enxugada por meio das compromissadas).

Os esforços fiscais a partir de 2016 trouxeram um impacto benigno no custo da dívida, mas a fraqueza da economia, inclusive com recessão em 2015-16, cobrou seu preço, dificultando a melhora dos indicadores fiscais. Além disso, houve a necessidade de reconhecer dívidas associadas às pedaladas dos anos anteriores. Mais importante, e ironicamente, o ganho de confiança dos investidores aumentou a demanda de papéis do governo, contendo o crescimento das operações compromissadas (como proporção do PIB).

A pandemia gerou nova onda de gastos e aumento da dívida, mas ao final de 2022 os indicadores voltaram ao patamar de 2019.

O quadro atual, com déficits primários elevados e persistentes, renova a preocupação com a dinâmica da dívida. Não só pela sua elevação, mas pela deterioração adicional do seu perfil.

Do ponto de vista do financiamento do governo, a situação ideal é que a dívida seja de longo prazo e com taxas prefixadas no momento da sua emissão. A materialização desse ideal depende das condições de mercado. Se o ambiente é mais arriscado, com piora de indicadores fiscais, o custo da dívida se eleva e os investidores dão preferência a papéis com prazo mais curto e taxas pós-fixadas. Isso limita bastante a capacidade do Tesouro de melhorar o perfil da dívida.

A participação de títulos prefixados está na casa de 23% do total, ante 28% ao final de 2022. Considerando o ciclo de corte de juros do BC, era de se esperar alguma recuperação. São cifras muitos distantes do pico de 43% em 2013, quando havia maior interesse de estrangeiros pelo país investment grade.

Em relação aos prazos, o quadro pouco mudou, mas as operações compromissadas têm crescido como proporção do PIB desde 2022, o que é um sinal desconfortável.

O caminho para uma dívida menos onerosa e com perfil mais saudável depende de sua redução. E isso requer responsabilidade fiscal. Não há atalhos aqui.


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