quarta-feira, 8 de maio de 2024

Roberto DaMatta - Cobertos pelo manto de Madonna

O Globo

Ela é uma versão pós-moderna, globalizada, digitalizada e extravagante de uma Maculada Nossa Senhora. Uma entidade

Toda celebridade tem uma aura. Um nevoeiro a envolve, revelando sua distância dos comuns. Um manto a distingue e abriga seus seguidores — seus fanáticos fãs.

O show apoteótico de Madonna numa Copacabana que com ela rima admite invocar um manto porque, tal como uma deusa — que as virgens Imaculadas me perdoem —, Madonna é uma versão pós-moderna, globalizada, digitalizada e extravagante de uma Maculada Nossa Senhora. Uma entidade, reitero, que — livre como manda a lógica dos exitosos, santos, anjos e deuses — é absolutamente essencial para suportar este nosso vale de lágrimas.

A balbúrdia estudada do show não espanta. Fico, entretanto, abismado pela presença persistente e englobadora da mulher, do feminino e da feminização no sistema de crenças e na simbologia que satura nossas vidas. O feminino com audácia de partejar um show-ritual voltado a uma história de vida dedicada à luta contra preconceitos, valores consagrados e papéis sociais proibidos. Todo ele realizado em inglês e no estilo teatral forjado nos Estados Unidos, onde saltam aos olhos transgressões eróticas que nós, brasileiros do século passado, só praticávamos abertamente no carnaval. A persistência dos valores americanos se revela na fábula da conquista da fama, do sucesso e da distinção pelo esforço individual e pela fidelidade aos sonhos mencionados na prédica-agradecimento que Madonna nos ofertou como motivadores do seu êxito — de sua saída de um acachapante anonimato.

Na dimensão messiânica, o show é puritanicamente púlpito, altar e tribuna. Suas mensagens são transmitidas em movimentos e fantasias bizarras que invocam o poder libertário do tabu e do proibido.

Estou indo longe demais?

Penso que não exagero ao estender os rituais devidos às celebridades — esses indivíduos que podem tudo — ao sagrado dos deuses, anjos e santos. Vale invocar uma conceituação do êxito e da celebrização, tal como sugeriu um comentarista das 600 e tantas páginas dos “Diários” do ator-celebridade Richard Burton, publicados em 2012.

Ali se sugere que toda celebridade, todas essas figuras excepcionais têm o direito de ostentar o selo de “sagradas” porque, como disse um velho sociólogo francês, ignorado pela intrincada sociologia nacional, elas são figuras removidas do cotidiano ou da vidinha ordinária. Mas, no palco-altar, produzem espanto e felicidade com o seu manto tecido pelas artes que praticam. São mediadoras entre o desencantado mundo real e outro universo pleno de gestos censurados e desejados. Um espaço carnavalesco e carnavalizado em que vivem nossas Madonnas.

Você sabe quem tem sucesso — diz o citado comentarista inspirado na vida de Richard Burton e Elizabeth Taylor — quando alguém o reconhece em algum lugar; sabe que tem muito sucesso quando todos o reconhecem em todos os lugares. E sabe que é uma celebridade quando as pessoas duvidam que você esteja em algum lugar.

Você tem certeza da celebrização — adiciono abrasileirando a conceituação — quando todos sabem com quem estão falando! Desse modo, quando você confirma quem é, há o relâmpago do milagre, porque o interlocutor acredita que ser reconhecido como uma celebridade é equivalente a subir numa quimérica elevação — um além do arco-íris. Aquele cobiçado espaço dos que tudo podem. Lugar sem leis, dores, doença e... “cheio de dinheiro”!

Quando ficamos diante de uma celebridade, ressuscitamos as expectativas do milagre do bem-estar. Surge também uma liberdade radical que rompe com interdições e, desse modo, reforça nossa força em nós mesmos. Nasce uma fortuna generalizada que custa caro e revela o imenso poder do talento. Trata-se de uma bem-aventurança legítima que não se estabelece por filiação, voto ou privilégio, mas da dedicação e do amor a uma ocupação que a honestidade das artes performáticas oferece nesses shows que nos fazem esquecer o sofrimento da vida e do mundo.

Madonna, protegei-nos com vosso manto que transforma o tédio em magia e a rotina em filme americano.

 

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