O Globo
Ela é uma versão pós-moderna, globalizada,
digitalizada e extravagante de uma Maculada Nossa Senhora. Uma entidade
Toda celebridade tem uma aura. Um nevoeiro a
envolve, revelando sua distância dos comuns. Um manto a distingue e abriga seus
seguidores — seus fanáticos fãs.
O show apoteótico de Madonna numa Copacabana que com ela rima admite invocar um manto porque, tal como uma deusa — que as virgens Imaculadas me perdoem —, Madonna é uma versão pós-moderna, globalizada, digitalizada e extravagante de uma Maculada Nossa Senhora. Uma entidade, reitero, que — livre como manda a lógica dos exitosos, santos, anjos e deuses — é absolutamente essencial para suportar este nosso vale de lágrimas.
A balbúrdia estudada do show não espanta.
Fico, entretanto, abismado pela presença persistente e englobadora da mulher,
do feminino e da feminização no sistema de crenças e na simbologia que satura
nossas vidas. O feminino com audácia de partejar um show-ritual voltado a uma
história de vida dedicada à luta contra preconceitos, valores consagrados e
papéis sociais proibidos. Todo ele realizado em inglês e no estilo teatral
forjado nos Estados Unidos, onde saltam aos olhos transgressões eróticas que
nós, brasileiros do século passado, só praticávamos abertamente no carnaval. A
persistência dos valores americanos se revela na fábula da conquista da fama,
do sucesso e da distinção pelo esforço individual e pela fidelidade aos sonhos
mencionados na prédica-agradecimento que Madonna nos ofertou como motivadores
do seu êxito — de sua saída de um acachapante anonimato.
Na dimensão messiânica, o show é
puritanicamente púlpito, altar e tribuna. Suas mensagens são transmitidas em
movimentos e fantasias bizarras que invocam o poder libertário do tabu e do
proibido.
Estou indo longe demais?
Penso que não exagero ao estender os rituais
devidos às celebridades — esses indivíduos que podem tudo — ao sagrado dos
deuses, anjos e santos. Vale invocar uma conceituação do êxito e da
celebrização, tal como sugeriu um comentarista das 600 e tantas páginas dos
“Diários” do ator-celebridade Richard Burton, publicados em 2012.
Ali se sugere que toda celebridade, todas
essas figuras excepcionais têm o direito de ostentar o selo de “sagradas”
porque, como disse um velho sociólogo francês, ignorado pela intrincada
sociologia nacional, elas são figuras removidas do cotidiano ou da vidinha
ordinária. Mas, no palco-altar, produzem espanto e felicidade com o seu manto
tecido pelas artes que praticam. São mediadoras entre o desencantado mundo real
e outro universo pleno de gestos censurados e desejados. Um espaço carnavalesco
e carnavalizado em que vivem nossas Madonnas.
Você sabe quem tem sucesso — diz o citado
comentarista inspirado na vida de Richard Burton e Elizabeth Taylor — quando
alguém o reconhece em algum lugar; sabe que tem muito sucesso quando todos o
reconhecem em todos os lugares. E sabe que é uma celebridade quando as pessoas
duvidam que você esteja em algum lugar.
Você tem certeza da celebrização — adiciono
abrasileirando a conceituação — quando todos sabem com quem estão falando!
Desse modo, quando você confirma quem é, há o relâmpago do milagre, porque o
interlocutor acredita que ser reconhecido como uma celebridade é equivalente a
subir numa quimérica elevação — um além do arco-íris. Aquele cobiçado espaço
dos que tudo podem. Lugar sem leis, dores, doença e... “cheio de dinheiro”!
Quando ficamos diante de uma celebridade,
ressuscitamos as expectativas do milagre do bem-estar. Surge também uma
liberdade radical que rompe com interdições e, desse modo, reforça nossa força
em nós mesmos. Nasce uma fortuna generalizada que custa caro e revela o imenso
poder do talento. Trata-se de uma bem-aventurança legítima que não se
estabelece por filiação, voto ou privilégio, mas da dedicação e do amor a uma
ocupação que a honestidade das artes performáticas oferece nesses shows que nos
fazem esquecer o sofrimento da vida e do mundo.
Madonna, protegei-nos com vosso manto que
transforma o tédio em magia e a rotina em filme americano.
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