segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Tornozeleira fala, por Miguel de Almeida

O Globo

Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte

Quando escrevi aqui que Bolsonaro parecia ouvir vozes, leitores me condenaram. Não direi felizmente, mas agora ele mesmo confessou o fato ao tentar romper a tornozeleira. Acreditou que o aparelho emitisse mensagens — talvez alienígenas. Dá para entender, enfim, a lógica por trás de seus seguidores e de hábitos tão estranhos quanto ajoelhar-se e rezar para um pneu.

Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.

O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.

Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.

Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.

Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.

Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.

Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.

Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.

Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.

E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.

 

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