Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo
civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais
uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores
humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu
de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou
com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com
a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do
planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.
Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas
ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades
pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude
nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História
Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal,
pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria
comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas,
exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado”
particular.
Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa
força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior
democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu.
Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um
dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há
muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam
alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o
ministro Paulo Guedes percebeu existir.
Eles não têm formação, não têm profissão, não têm
emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num
processo de precarização aparentemente sem fim.
Foi dessa decadência que se fez a noite, desse
pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às
mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto
que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver
problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro
ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e
desalento, catalisada pela covid-19?
Da estagnação econômica e da desigualdade brota a
degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer
das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia
de um passado idealizado – make America great again –, são a
ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade
a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.
O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de
estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela
desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou.
Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos
formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do
mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo
tipo de milícias.
Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões
do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que
surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele
expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão
longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que
tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma
horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter
atenção para isso e qualificar essa esperança.
Esse será o grande desafio de Joe Biden:
compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade
de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do
século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas
públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do
sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das
oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se
fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da
demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo
todo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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