'A
causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase
escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais
brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente
fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris
tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu
primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém
expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a
intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos
prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter
caráter é importante.”
Quando
Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a
supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que
dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas
lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto
com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo
no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas
conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um
século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a
vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai
jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não
é para você”.
O
dia 7 de novembro é histórico para Joe Biden por lembrar sua posse como senador
há 48 anos. Mas para toda a sua geração e as que vieram depois serve como
quebra de outro preconceito, o que recai sobre os velhos. Nunca é tarde para um
sonho. Essa é a mensagem.
Há,
em qualquer eleição, duas direções para olhar o evento. Olha-se para o que virá
e o que se deixa para trás. O passado agora é Donald Trump. Ele é o líder que
exibiu os piores sentimentos como se fossem normais. “Há muita gente que não
consegue respirar, acorda, vê os tuítes, vai a uma loja e vê que as pessoas que
antes tinham medo de mostrar seu racismo estão ficando cada vez mais
desagradáveis”, disse Jones. Um presidente sempre amplifica suas mensagens.
Quando mente, ofende, discrimina, ele autoriza esse comportamento. Trump, certa
vez, debochou de um jornalista por ter um defeito físico. Foram quatro anos
expostos ao governante do país mais forte do mundo estimulando as piores
atitudes. Como ensinar às crianças que ser decente vale a pena se o presidente
debocha de valores, desrespeita códigos civilizatórios, descumpre as leis?
Em
uma vitória há também o olhar para o futuro e esse é o mais relevante. O futuro
não será azul. Será uma transição hostil para um governo que assumirá no meio
de uma pandemia e de uma crise econômica. Há ainda as fraturas da América para
serem curadas. Todos terão trabalho a fazer para reatar o país partido. Alguns
republicanos cumprimentaram o novo presidente, como fez Jeb, da casa Bush, que
por 12 anos governou o país. “Eu tenho orado pelo nosso presidente em grande
parte da minha vida adulta. Eu vou orar por você e seu sucesso.” Um protestante
republicano estava dizendo a um democrata católico que oraria por ele.
Filadélfia
foi o berço da Constituição e foi simbolicamente o ponto do recomeço. O
ex-presidente Fernando Henrique ressaltou a coincidência e lembrou que em dois
séculos e meio nenhum presidente havia atacado os alicerces da democracia. “O
atual o fez sistemática e deliberadamente”. No mundo, inúmeros líderes
cumprimentaram Joe Biden. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, falou da
aliança na luta contra a mudança climática.
“Vejo as águas que passam e não as compreendo (…) Como poderia compreender-te América?”, Drummond lançou essa pergunta há 75 anos. A dúvida amanheceu ontem como nova. Como entender tudo o que houve nesses dias? Como entender os últimos quatro anos e os 70 milhões de votos em uma pessoa nefasta? “Tantas cidades no mapa… nenhuma porém tem mil anos.” O poeta parecia ver o que vivemos esta semana investigando a geografia americana para adivinhar a cor de cada cidade. É forçoso entender tudo o que houve porque, como ensinou Paine, essa é a causa da humanidade.
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